SOL SOMBRIO - PARTE IV: A DANÇA DA MORTE>>> Nádia Coldebella
A lua minguava no céu, deixando uma tênue e nervosa luz perpassar pelas frestas das nuvens. A chuva há pouco havia cessado, mas as poças d'água ainda acumulavam-se na estrada de terra. Refletiam a luz dos faróis de alguns carros vagarosos, que insensivelmente se lançavam sobre elas, destruindo a efêmera paz que pareciam ter encontrado. Eles subiam a íngreme estrada, cercada de arbustos e árvores tropicais ainda em estado bruto, que terminava na parte mais alta da colina. Bem no topo, erguia-se uma construção toda feita de pedras revestidas por uma textura fina de calcário branco, que, agora, molhada pela chuva, resplandecia a parca luz da lua.
Hyalin, como sempre, trajara-se todo de branco. Também usava uma casaca feita com esmero por mãos delicadas, porém o brilho dos ornamentos nas golas deixavam-no com uma aparência retrô. Além da cartola e da bengala que trazia quase junto ao corpo, O Negro percebeu em seu bolso um relógio cuja corrente dourada balançava a cada passo dado. Ele entrou, tentando, em vão, confundir-se aos convidados comuns. Morus revirou os olhos e respirou fundo. Ajeitou a casaca e a cartola com uma certa reverência, elevou a bengala para perto do corpo e riu-se do repentino refinamento. À passos lentos, seguiu o irmão e adentrou o salão.
A música de elevador tocava suavemente e as pessoas pareciam muito educadas, falando baixo e movimentando-se contidamente. Os risos que ecoavam no ar eram das moças mais libertinas, encantadas pelos gestos excessivos e pelo eloquente palavrear do Branco. Morus quase sentiu pena dele. Ele tentava desesperadamente misturar-se àquela gente, mas não passava de uma aberração grotesca e hipócrita, uma criatura de carisma fingido.
Um perfume familiar, mas exótico, chegou-lhe as narinas. Tinha notas amadeiradas e adocicadas, mas também cheirava suor, saliva e sensualidade. Ele despertou em Morus lembranças antigas, prazerosas e perturbadoras, das quais foi impiedosamente arrancado quando uma mão muito delicada, de dedos finos e compridos ornados por longas unhas pintadas num tom de cobre, tocou de leve o seu braço.
Os olhos negros do anjo encontraram outros, de puro âmbar, prescrutando sua face. A mulher que os possuía era uma criatura magnífica. Quase tão alta quanto ele, ela tinha a pele levemente dourada pelo sol e os cabelos longos, fartos e acobreados, que desciam numa intensa cascata sobre seus ombros nus. Usava um vestido longo, feito de um tecido muito leve e etéreo, cuja cor, dependendo do tipo de luz que incidia sobre ele, poderia variar entre o dourado mais brilhante e o cobre mais intenso. Nos pés trazia sandálias douradas, trançadas até os joelhos à moda grega, de forma que apareciam entre as profundas fendas do vestido quando ela se movia.
- Chalc'oz! - os lábios do anjo entreabriram apenas levemente, suspirando a estranha palavra que era o nome daquela mulher. O ar exalado pela negra boca carnuda tocou-lhe a face e ela rapidamente corou. Suas pupilas dilataram-se, deixando seus olhos quase como os do Negro. Um leve arrepio percorreu o pescoço do anjo quando ela estendeu uma das mãos pequenas e delicadas e tocou seu rosto - Onde você estava? - a voz dele saiu baixa e rouca.
Ela sorriu, um sorriso largo de dentes muito brancos - Aqui, sempre... - e comprimiu a mão junto ao rosto dele, para, em seguida, deslizá-la entre seus cabelos. Ele sentiu o arrepio descer pela espinha, enquanto uma bola de calor instalava-se em seu estômago. O sorriso dela alargou-se um pouco mais, maliciosamente, porém logo se tornou um gemido abafado quando O Negro passou vigorosamente a mão pela sua cintura e a conduziu para a pista de dança.
Ele então subiu a mão pelas suas costas. Com as pontas dos dedos acariciou seus ombros descobertos e seguiu a linha do braço até a ponta dos dedos, deixando, no caminho, uma pele desesperada pelo toque e repleta de pelos eriçados. Tomou-a pela mão e a conduziu num rodopio, mas, em meio a volta, ela parou, tensa e hirta. O olhar adquirira uma expressão grave e já não se fixava em Morus, mas em Hyalin. O Negro ainda tentou dissuadi-la, mas ela se desvencilhou de seus braços e, em passos decididos caminhou até o Branco que, ao vê-la, endireitou o corpo e permaneceu numa quietude sepulcral.
Morus seguiu-a com os olhos e sentiu seu perfume intensificar-se, hipnotizando todos os comuns que estavam nas proximidades. Ela aproximou-se do Branco e, sem nada dizer, estendeu a mão direita e envolveu o pescoço dele, acariciando de baixo para cima, até a base da nuca, para em seguida puxar de leve seus cabelos. Ele fechou os olhos enquanto uma intensa onda de calor desceu da espinha à virilha. Ela levou uma das mãos dele à sua cintura quando Another Night to Cry começou a tocar. Embalando-o no ritmo da música, ela colocou languidamente a outra mão por dentro do casaco e a estendeu até as costas, descendo os dedos pela coluna vertebral. Hyalen se contorceu de leve, quase inconsciente de prazer, pendendo a cabeça para traz e fechando os olhos com mais força.
Ela deslizou a mão, que antes estava no pescoço, para o peito do anjo e parou na linha da cintura, procurando um caminho por entre os botões prateados da camisa. Ao encontrar, permitiu que os seus dedos quentes roçassem levemente a pele fria e albina da barriga. A respiração do Branco tornou-se mais pausada e densa. Quando ela colocou a mão toda por dentro da camisa e a desceu até o fecho do cinto, ele gemeu. A mulher deslizou a mão que acariciava a coluna para o osso sacro e pode sentir, perto do pulso, o volume do inseparável caderno de couro preto que Hyalen havia guardado num bolso secreto do casaco. Ela aproximou-se mais, encostando sua pélvis nos quadris nervosos do Albino e deixando que o bico rijo de seus seios, cobertos apenas pelo fino tecido do vestido, encostassem em sua mão branca, gelada e trêmula. Ele exalou todo o ar que pode e afundou a cabeça nos cabelos fartos de Chalc'oz, completamente embriagado com o intenso perfume que exalava dela. Ela mergulhou a mão que estava no cinto alguns centímetros calça adentro. Em seguida, levantou um pouco a cabeça e mordiscou o lóbulo das suas orelhas pálidas.
- Oi - disse num sussurro quente que fez o anjo trepidar tal qual chama de vela, enquanto apanhava, habilmente, o caderno do bolso secreto e o atirava aos pés de Morus.
Depois retirou lentamente a mão do cinto e subiu-a mais uma vez até a barriga albina, sentindo o sangue frio que fluía rapidamente sob a pele. Hyalen colocou uma das mãos na nuca da mulher, agarrando-a firmemente pelos cabelos. A outra ele afundou em suas costas, prendendo entre os dedos as asas acobreadas recolhidas sob o vestido. Ela sentiu-se como um pássaro, imobilizado pelas mãos de um homem. O anjo sorriu e seu rosto iluminou-se macabramente.
- Vermelha... - Ele disse e sua voz era profundamente aterradora. Os olhos dele mergulharam nos dela e ela nada viu, apenas sentiu o vazio branco e fantasmagórico da mais profunda solidão. Mesmo assim, foi sua vez de gemer, de terror e prazer intenso, e entreabrir os lábios, para receber neles a boca do Anjo Albino.
Ele tocou os lábios dela apenas de leve e todo o calor foi afugentado de seu corpo. Ela sorriu para ele enquanto percebia seu coração congelar, enquanto via a vida se esvair tal qual água derramada pelo chão preto e branco.
Morus atendeu ao sinal feito por Chalc'oz pouco antes de a última nota da canção ser entoada. Recolhera o livro do chão e correra porta a fora, até a beira do penhasco. Viu o brilho tênue da casa se dissipar e, chorando, abriu as asas e jogou-se na vastidão negra e silenciosa do céu.
Continua em 21/04/2022
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Leia as outras partes aqui:
Parte 01: Os irmãos.
Parte 02: O ajoelhado.
Parte 03: O contrato.
Ouça a trilha sonora aqui:
The Thrill is Gone - B. B.King.
Another Night to Cry - Lonnie Johnson
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