A MISSA, O BAR >> Sergio Geia
Ele vai à missa aos sábados. Ele também vai ao bar aos sábados. Como um bom espectador, observo: uma coisa não exclui a outra; quase sempre.
Então, ontem, como todos os sábados, quase quatro horas, céu lindamente azul e ensolarado, ele desceu o elevador destino bar. Uma. Era para ser apenas uma cerveja. Depois ele planejava voltar pra casa, tomar banho, vestir-se com roupa limpa, e aguardar até próximo das sete, o horário da missa, para então se deslocar até a igreja.
Mas aí uma moça chega. Alta, magra, loira. Assim como ele, ela pede uma cerveja. Parece bem à vontade, conversa com um, com outro, depois puxa conversa com ele. Banalidades tipo o calor que se faz nesta terra, a falta de chuva, é, o Cantareira está secando, cervejas artesanais que ela parece conhecer muito bem, as cachaças da região que ele conhece bem. Mais à vontade, ela se senta à sua mesa e então, depois disso, ele esquece a missa e não vê mais o tempo passar.
— Nunca vi você aqui, e olha que sou freguesa antiga, não é Chico?
O dono do bar, com um leve aceno de mão, confirma. Ele explica que também é freguês antigo, mas dispensa a confirmação do proprietário. Diz que geralmente toma uma cerveja no sábado, mas não fica muito tempo porque vai à missa, e não sabe a razão, depois se arrepende, claro, pergunta em qual horário de missa ela vai, assim mesmo, pressupondo que ela fosse à missa, assim como ele, e se sente um grandessíssimo idiota com a flechada de sua resposta:
— Eu não vou à missa, amor; não aceito interlocutores entre mim e Deus.
Aquele que ainda aceita interlocutores entre ele e Deus observa ela tirar um cigarro do maço de Marlboro, as unhas avermelhadas, bem pintadas, assim como o batom de seus lábios, os dedos longos e ágeis.
— Tem fogo, amor?
Não, ele não tem fogo, não fuma. E inocentemente, ou idiotamente, ele lê na pergunta dela algo a mais do que uma mera solicitação de fósforo ou isqueiro. Ela se levanta, vai ao balcão, e encontra fogo com Chico.
— O que você faz?
Ele pensa se deve ser honesto ou se deve inventar coisas. Está despreparado para criar histórias, logo ele, um criador de histórias. Diz que é escritor, e completa dizendo que não dá para viver só de escrever histórias; então faz outras coisinhas. Ele nota o arregalar dos olhos dela, a curiosidade crescente avolumando-se na íris âmbar.
— Você tem livros?
— Tenho.
— Ai, amor, me mostra, quero ver.
Quando dá por si, está em sua sala, mostrando livros a ela. Na cena, ele tem nas mãos um copo de uísque, está de pé. Ela está sentada no tapete, descalça, um copo de uísque no chão, um livro na mão, e dedos nervosos virando páginas, e lábios afoitos comentando passagens.
Ele se lembra dela se levantando, olhando a estante, lendo em voz alta o nome dos autores, retirando um, depois outro, e outro, fazendo pilhas sobre a mesa. Ela diz que adora esta passagem, hoje fui ao túmulo de Gina e de longe já vi as rosas vermelhas espetadas na jarra do lado esquerdo, Oriana veio ontem. Não combinamos nada, é evidente, mas a jarra do lado esquerdo ficou sendo dela, a jarra da direita é das minhas rosas brancas, que já murcharam, as brancas duram pouco, e se emociona com a leitura. Vai até a bolsa, pega um cigarro, ele vai até a cozinha, necessita de fogo.
Outra cena: estão colados, em pé, no meio da sala, dançando Sabor a Mi, com Eydie Gormé e Los Panchos. O mundo não existe lá fora. O som da chuva batendo nos telhados não existe. O vento que entra pela sala e sacode a cortina não existe. Só existem os dois, o perfume dela, o calor, o desejo.
Lembra de estar esparramado ao chão, ela em seus braços. Lembra do cotovelo que esbarrou no copo e derramou uísque pelo tapete. Lembra de um beijo com sabor de nicotina. Lembra da lua, da sacada fresca, do ar fino, e dos dois apagando luzes e indo para o quarto.
P.S.: A passagem citada pertence ao conto “Uma branca sombra pálida” do livro “A noite escura e mais eu”, de Lygia Fagundes Telles, Editora Rocco, 4ª edição, pg.127.
Comentários
Este recorte de cenas que vc fez ficou tão cinematográfico... como se uma tela preta se interpusesse entre uma cena e outra, como num sonho ou numa lembrança!
Gostei do "Você vem fogo, amor?" e achei que o "amor", apesar de dar uma conotação não tão ingênua à moça, combina superbem com ela, que parece uma sedutora quase clichê (loira, alta, magra, unhas e batom vermelhos), mas que, no fim de tudo, se entrega, seduzida pela magia literária do humilde autor!
Ah, a literatura sempre sedutora!
Estou amando essa sua nova fase (quase biográfica?😁)
Um gde abço, Serginho! 👽