NA SALA DE ESTAR >> Carla Dias
Nasceu com a seriedade que os desenhos não conseguem minar. Permitiu que tentassem. Insistiu que o fizessem. Dele nunca levaram um sorriso ou conquistaram seu apreço por personagem favorito.
Queria experimentar a coragem dos que se movimentam em direção ao imprevisível. Eles têm o olhar desafiador que antecede à largada. Pena que ele se modifica durante o caminho. Já viu o de alguns embaçarem. Aprecia quando aquele olhar insiste em mostrar aos seus que ainda há chance de avistar a linha de chegada.
Olhar também comete enganos, insiste no erro, desvia dos fatos.
É apenas um covarde, enfiado em seu pijama, ancorando sua tristeza na sala de estar. A tristeza que sempre esteve ali, quando assistia aos desenhos que não despertavam nele interesse, mas tinham de ser assistidos por alguém. Não suportava a ideia de deixar seus protagonistas e coadjuvantes sozinhos na sala. Fingiu que lhes fazia companhia. Fez o mesmo com as pessoas: estava sempre ali, mas ausente.
Inveja os que conseguem quebrar as regras cultivadas entre intenções equivocadas e ações desiludidas. Que, mesmo abrasados pelas lamentações justificadas, levantam-se de suas poltronas, atravessam a sala de estar e abrem a porta. Eles se retiram do próprio cárcere, tomados por urgências ruidosas. Ainda assim, acreditam nas oportunidades e aventuras que os aguardam nem sabem onde. Nunca consideram que eles podem ser desagradáveis.
O lugar dele é a sala. Conhece bem o tapete sob seus pés, acompanhou o surgimento de cada rasgo nas cortinas, alimentou-se de muitas gerações de hortaliças criadas no seu quintal. Assistiu a muitas partidas, esquecimentos, faltas.
Na tevê, os desenhos continuam a fazer sua parte. Sente pena deles por não poderem sair de casa. Tem certeza de que amanhã descobrirá quais dos personagens é o seu favorito.
Imagem © Peter H. por Pixabay
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