BOLERO >> Sergio Geia
Já contei para vocês. Não. Minto. Eu não contei. Mas vocês já perceberam, claro que perceberam, esses momentos estão presentes em muitas de minhas crônicas, difícil não notar. E mais uma vez volto a eles.
Prazer superlativo, taí a lógica do hábito. Logo pela manhã, abrir a sacada, sentar no sofá da sala, respirar, sem pressa, sem compromissos, ligar o som, ouvir Night And Day com Diana Krall, sentir o vento fino a entrar pela sacada, pegar um Rubem Braga na estante, ou um Caio Fernando Abreu, ler uma crônica, talvez duas.
Faço isso aos sábados e domingos, dias em que tenho tempo. Já li umas quatro vezes as 200 crônicas escolhidas do Rubem. Já li todas as crônicas publicadas em livro do Caio, outras tantas em jornais, e é sempre bom encontrar textos novos. Viver um pouco a intimidade do cronista, a sua varanda, a areia da praia, aquele almoço mineiro, ou mesmo a noite iluminada de Paris ou Londres, a lua quadrada, o fim de noite em um boteco do Rio.
Ultimamente, além do Rubem, do Caio, me delicio com Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto e José Carlos Oliveira, na antologia “Os Sabiás da Crônica”, publicada pela Autêntica, em 2021. E também com o Antônio Maria, em “Vento Vadio” (andei pensando: será primo, talvez de quinto grau, de meu “Folha Vadia”?), publicado pela Todavia também em 2021.
Ler essa turma, especialmente para quem gosta de crônica, é uma inspiração para o cotidiano. É viagem pura, além de um encontrar de subjetividades, ou algo perdido, que ficou lá no passado, na memória, trancado a sete chaves, quiçá, esquecido. Vejam esta história, por exemplo.
Há muitos anos, fomos com alguns amigos a um concerto. A orquestra executou grandes obras, mas uma me chamou a atenção naquela noite memorável, me envolveu, me emocionou. No entanto, o tempo passou e eu a esqueci.
Pois hoje estava lendo uma crônica do José Carlos Oliveira, “Solo para flauta” e num dado momento ele disse:
“Nenhuma ferocidade aqui: penumbra, surdina, radioso silêncio de sinfonia. Ou talvez o “Bolero” de Ravel, estampido proposto ao deleite de tímpanos surdos”.
O céu se abriu.
Como poderia esquecer?
O “Bolero”, de Ravel.
Não perdi tempo. Na mesma hora procurei a música na plataforma e a coloquei para tocar depois de tantos anos, salvando-a em minha playlist de clássicos.
A emoção foi até maior. Além da beleza da obra, os momentos alegres e divertidos daquela noite acarinharam a alma.
Comentários
Zô, são crônicas deliciosas, daquelas bem raiz; como faz bem! Da última parte de seu comentário, nem sei o que dizer. Aliás, sei: grato, mais uma vez rsrs.