REVERTERE AD LOCUM TUUM (2ª parte)
>> Albir José Inácio da Silva
(Continuação de 25/01)
O telefonema que desencadeou a crise tinha vindo de um hospital em Angra dos Reis.
Na semana passada, deslumbrado com uma escultura que viu no Cemitério do Caju, Augusto foi à Ilha Grande procurar o artista e encomendar um busto em mármore para coroar o seu chalé. Disse à família que viajava a trabalho, a verdade só o Durval sabia.
Durval sempre sabia. Era o único que apoiava a empreitada de Seu Augusto. “É o desejo dele. Tem que ser respeitado”, dizia. Numa tarde sonolenta, Augusto tinha chegado à funerária, humilde e falando baixo. Durval, acostumado com a dificuldade desses momentos, também falava baixo, atencioso e prestativo. A conversa avançou e ele descobriu que Seu Augusto não tinha um defunto, mas tinha muitas perguntas.
— Seu Augusto, tem jazigo de todo preço, mas, uma vez adquirido o espaço, o senhor pode ir melhorando, valorizando, é como uma casa.
Augusto não se preocupava com a morte, “todos morreremos algum dia e isso não é bom nem mal, é a vida”, dizia. Mesmo o pós-morte, assunto que considerava mais sério, não lhe tirava o sono. O que lhe coubesse, aceitaria. Também não se importava com roupas, carros e casas. Andava de ônibus, só tinha roupa de trabalho e morava de aluguel.
Mas de alguma vaidade ninguém escapa e a de Augusto, mais que uma vaidade, era uma obsessão: não ser enterrado como viveu, repousar num lugar que recompensasse sua vida de privações. Há anos visitava cemitérios para observar a arte, a arquitetura e a beleza dos túmulos. Em casa, escondido da família, visitava sites especializados, fazia desenhos e planos.
Quando conheceu Durval, foi amizade à primeira vista. Juntos planejaram e executaram, de modo a caber no orçamento de Seu Quincas — não sem sacrifícios — a compra, construção e embelezamento de um “lugar decente, debaixo de uma árvore frondosa, numa alameda discreta, longe da via principal, mas encantadora”, dizia Durval.
Agora Dona Quinca estava sedada e algemada numa maca, sem previsão de alta. Tinha apanhado bravamente de policiais e enfermeiros antes que a injeção a tranquilizasse. Já estava sonolenta quando ouviu a voz de prisão por desacato, lesão corporal e dano de mais de vinte mil reais.
Mas onde estava o Augusto?
Na volta da Ilha, Augusto imaginava já a escultura pronta, enfeitando o seu mausoléu, quando a lancha bateu numa pedra e afundou. Felizmente salvaram-se todos, resgatados por outra embarcação, mas Augusto chegou desacordado ao hospital por conta de uma pancada na cabeça durante os embates do naufrágio.
Sem documentos, Augusto acordou três dias depois no Hospital de Angra dos Reis e informou o único telefone que sabia de cor, o da funerária. A assistente social fez a ligação, interrompendo a compra e venda que já estava assinada.
(Continua em 15 dias)
O telefonema que desencadeou a crise tinha vindo de um hospital em Angra dos Reis.
Na semana passada, deslumbrado com uma escultura que viu no Cemitério do Caju, Augusto foi à Ilha Grande procurar o artista e encomendar um busto em mármore para coroar o seu chalé. Disse à família que viajava a trabalho, a verdade só o Durval sabia.
Durval sempre sabia. Era o único que apoiava a empreitada de Seu Augusto. “É o desejo dele. Tem que ser respeitado”, dizia. Numa tarde sonolenta, Augusto tinha chegado à funerária, humilde e falando baixo. Durval, acostumado com a dificuldade desses momentos, também falava baixo, atencioso e prestativo. A conversa avançou e ele descobriu que Seu Augusto não tinha um defunto, mas tinha muitas perguntas.
— Seu Augusto, tem jazigo de todo preço, mas, uma vez adquirido o espaço, o senhor pode ir melhorando, valorizando, é como uma casa.
Augusto não se preocupava com a morte, “todos morreremos algum dia e isso não é bom nem mal, é a vida”, dizia. Mesmo o pós-morte, assunto que considerava mais sério, não lhe tirava o sono. O que lhe coubesse, aceitaria. Também não se importava com roupas, carros e casas. Andava de ônibus, só tinha roupa de trabalho e morava de aluguel.
Mas de alguma vaidade ninguém escapa e a de Augusto, mais que uma vaidade, era uma obsessão: não ser enterrado como viveu, repousar num lugar que recompensasse sua vida de privações. Há anos visitava cemitérios para observar a arte, a arquitetura e a beleza dos túmulos. Em casa, escondido da família, visitava sites especializados, fazia desenhos e planos.
Quando conheceu Durval, foi amizade à primeira vista. Juntos planejaram e executaram, de modo a caber no orçamento de Seu Quincas — não sem sacrifícios — a compra, construção e embelezamento de um “lugar decente, debaixo de uma árvore frondosa, numa alameda discreta, longe da via principal, mas encantadora”, dizia Durval.
O NAUFRÁGIO
Agora Dona Quinca estava sedada e algemada numa maca, sem previsão de alta. Tinha apanhado bravamente de policiais e enfermeiros antes que a injeção a tranquilizasse. Já estava sonolenta quando ouviu a voz de prisão por desacato, lesão corporal e dano de mais de vinte mil reais.
Mas onde estava o Augusto?
Na volta da Ilha, Augusto imaginava já a escultura pronta, enfeitando o seu mausoléu, quando a lancha bateu numa pedra e afundou. Felizmente salvaram-se todos, resgatados por outra embarcação, mas Augusto chegou desacordado ao hospital por conta de uma pancada na cabeça durante os embates do naufrágio.
Sem documentos, Augusto acordou três dias depois no Hospital de Angra dos Reis e informou o único telefone que sabia de cor, o da funerária. A assistente social fez a ligação, interrompendo a compra e venda que já estava assinada.
(Continua em 15 dias)
Comentários
Você está melhorando, valorizando, como uma casa...
A casa da nossa curiosidade. :)