MINUTO DE SILÊNCIO >> Carla Dias >>
Sorri, faz reverência e então...
Ao seu redor, boquiabertos e arrítmicos, os outros o observam. Alguns até ousam lançar ao vento seus comentários destecidos: o que pode um ser humano desses querer da vida, dando-se ao desfrute de desfilar tal afronta durante o minuto de silêncio?
Há muito tempo, o minuto de silêncio se tornou a forma mais cativante de angariar compadecimento, vencendo todas as campanhas publicitárias de tarimbadas agências. Quem lançou a moda, e ajudou a torná-la orgulho mundial, foi um ator não muito conhecido, que, por puro partidarismo emocional — era marido da estrela principal — acabou ocupando o cargo de mocinho corajoso em um badalado filme de Hollywood. O fiasco foi inevitável, que não houve roteirista e diretor que desse jeito na falta de talento do moço. O que os envolvidos com o filme não esperavam é que seria ele — quem se tornara a piada da vez e o ex da estrela principal do filme — que mudaria o mundo.
A atriz principal se retirou do relacionamento valendo-se da deselegância gritante de romper com ele durante um popular programa de entrevistas, enquanto o desergenizado mocinho jantava com a mãe, assistindo ao programa. A mãe achou que “até que ela foi fofa, meu filho”. Ele chorou a noite inteira.
Na tentativa de se desculpar pela falta de talento e dedicação à nobre profissão, pediu que o mesmo programa o recebesse, e foi atendido de imediato, que não há nada que dê mais ibope do que lavação de roupa suja de celebridades em programa de tevê ao vivo.
A entrevistadora, uma experiente jornalista, especializada na arte da dramatização da vida alheia, excitadíssima com a exclusiva — e por estar ao lado de tão bem-apessoado ator —, fez logo três perguntas para o moço, que, contradizendo a fama de falar mais do que devia, calou-se, encarando o vazio, como se nunca tivesse se colocado de frente às câmeras.
Todos se calaram com ele. Durante um minuto, devidamente cronometrado, o silêncio foi total e em uma grande parte do mundo. O olhar dolente, o aspecto de quem vem ruminando sofrimento, aquele desalento todo fez com que os olhos da entrevistadora marejassem.
Um minuto depois, o ator se mostrou digno do título, mas foi sem querer. Coração partido, ele levantou os olhos, encarou a câmera e disse, voz rascante, “perdoem-me por existir”.
O ator, que de ator realmente tinha nada, arrebatou os espectadores com a conclusão a qual chegou. Não foi atuação... Era claro que ele se sentia tão desvalorizado, e estava completamente ciente de sua inabilidade como interpretador de personagens, que realmente não via motivo para a própria existência.
Não há nada mais poderoso do que um momento de crendice absoluta a respeito de um absurdo. As pessoas que realmente não mereciam existir — desculpem a honestidade escancarada dessa narradora, mas há pessoas que fazem por merecer serem incluídas nessa categoria —, bom, elas jamais diriam isso ao mundo, tampouco pensariam dessa forma sobre si mesmas. Mas o ator, por mais desprovido de talento que fosse para o ofício, interpretou sua verdade de forma tão delicada, daquele jeito que faz coração apertar, olhos lacrimejarem (isso nunca tinha acontecido com a apresentadora escolada em escândalos!), consciência ser acessada sem defesas, que suas redes sociais, que sempre foram palco para destilarem as piores frases feitas, foram empanturradas, em horas, com mensagens de apoio.
Após o ocorrido, um político, assumidamente apaixonado por cinema — secretamente, um ator que deu muito certo, mas não nas telas de cinema, e sim nos palanques —, fez um pronunciamento em rede nacional. Todas as emissoras de tevê e canais da internet transmitiram ao vivo... Porque ao vivo é mais emocionante. Com esse pronunciamento, sobre a divindade do espírito do ator, ele alcançou a todos, até porque a sua equipe de tradutores garantiu legendas de primeira. Foi assim que o péssimo ator ganhou não um dia do ano para ser comemorado, mas um dia por semana para ser celebrado... Ainda que por apenas um minuto.
Silenciosamente.
Isso se deu logo após o ator pular do quadragésimo terceiro andar do seu prédio, o que tornou sua declaração no programa de tevê ainda mais significativa. Ficou estabelecido, então, o minuto do silêncio, quando o mundo se cala para escutar esse milagre livre dos sons das britadeiras que nunca param de trabalhar. O momento em que todos lamentam os que já passaram por esse mundo complexo, repleto de programas de entrevistas ao vivo e celebridades tão instantâneas quanto certas sopas. E tão insossas quanto, também...
Com hora marcada para acontecer — uma forma de pagamento adiantado pelas perdas que virão, não importa quais ou as condições do ocorrido —, toda sexta, às três da tarde, o mundo para e silencia durante um minuto.
Esse outro homem, que nunca desejou ser ator e gosta do emprego que tem, ele até que aprecia o silêncio. Porém, cansou-se de silenciar em nome do que ninguém sabe explicar do que se trata. Pobre do ator, que foi uma pessoa que morreu foi de coração partido sendo completado com uma bela queda. Mas esse silêncio... Ele gosta de silêncio, mas os da sexta às três da tarde lhe parece infligido, feito uma lei criada para desamparar cidadão.
Ele sorri, faz reverência, e então começa a cantar. Canção preferida, com mensagem que é uma lindeza. Além de cantar, ele dança pela praça, como se ela fosse palco. Ao seu redor, trinta segundos de pessoas em silêncio, loucas para repetirem refrão, que é mesmo uma ótima canção. Eles se seguram até os quarenta e cinco segundos, quando o homem volta ao refrão, e com eles, milhões soltam a voz.
Ele foi convidado para o programa de tevê ao vivo. Educadamente, não aceitou o convite. Ganhou milhares de amigos íntimos em algumas horas, mas não deu certo. Amigo mesmo ele já tem, e não é fã dos instantâneos. Aos poucos, as pessoas aprenderam a esquecê-lo, apesar de, às vezes, mencionarem a quebra do silêncio magistral que ele protagonizou, durante suas conversas.
O político até tentou inventar um dia inteirinho para ele, com direito a ser incluído no calendário como feriado. O homem sorriu, mais uma vez, e pediu ao político que apenas cuidasse bem do seu ofício, que assim, estaria cuidando bem das pessoas que acreditaram nele.
Às vezes, o cantor se lembra do ator, e faz silêncio durante um minuto, às sextas, às três horas da tarde.
Imagem: The Actor © Pablo Picasso
carladias.com
Ao seu redor, boquiabertos e arrítmicos, os outros o observam. Alguns até ousam lançar ao vento seus comentários destecidos: o que pode um ser humano desses querer da vida, dando-se ao desfrute de desfilar tal afronta durante o minuto de silêncio?
Há muito tempo, o minuto de silêncio se tornou a forma mais cativante de angariar compadecimento, vencendo todas as campanhas publicitárias de tarimbadas agências. Quem lançou a moda, e ajudou a torná-la orgulho mundial, foi um ator não muito conhecido, que, por puro partidarismo emocional — era marido da estrela principal — acabou ocupando o cargo de mocinho corajoso em um badalado filme de Hollywood. O fiasco foi inevitável, que não houve roteirista e diretor que desse jeito na falta de talento do moço. O que os envolvidos com o filme não esperavam é que seria ele — quem se tornara a piada da vez e o ex da estrela principal do filme — que mudaria o mundo.
A atriz principal se retirou do relacionamento valendo-se da deselegância gritante de romper com ele durante um popular programa de entrevistas, enquanto o desergenizado mocinho jantava com a mãe, assistindo ao programa. A mãe achou que “até que ela foi fofa, meu filho”. Ele chorou a noite inteira.
Na tentativa de se desculpar pela falta de talento e dedicação à nobre profissão, pediu que o mesmo programa o recebesse, e foi atendido de imediato, que não há nada que dê mais ibope do que lavação de roupa suja de celebridades em programa de tevê ao vivo.
A entrevistadora, uma experiente jornalista, especializada na arte da dramatização da vida alheia, excitadíssima com a exclusiva — e por estar ao lado de tão bem-apessoado ator —, fez logo três perguntas para o moço, que, contradizendo a fama de falar mais do que devia, calou-se, encarando o vazio, como se nunca tivesse se colocado de frente às câmeras.
Todos se calaram com ele. Durante um minuto, devidamente cronometrado, o silêncio foi total e em uma grande parte do mundo. O olhar dolente, o aspecto de quem vem ruminando sofrimento, aquele desalento todo fez com que os olhos da entrevistadora marejassem.
Um minuto depois, o ator se mostrou digno do título, mas foi sem querer. Coração partido, ele levantou os olhos, encarou a câmera e disse, voz rascante, “perdoem-me por existir”.
O ator, que de ator realmente tinha nada, arrebatou os espectadores com a conclusão a qual chegou. Não foi atuação... Era claro que ele se sentia tão desvalorizado, e estava completamente ciente de sua inabilidade como interpretador de personagens, que realmente não via motivo para a própria existência.
Não há nada mais poderoso do que um momento de crendice absoluta a respeito de um absurdo. As pessoas que realmente não mereciam existir — desculpem a honestidade escancarada dessa narradora, mas há pessoas que fazem por merecer serem incluídas nessa categoria —, bom, elas jamais diriam isso ao mundo, tampouco pensariam dessa forma sobre si mesmas. Mas o ator, por mais desprovido de talento que fosse para o ofício, interpretou sua verdade de forma tão delicada, daquele jeito que faz coração apertar, olhos lacrimejarem (isso nunca tinha acontecido com a apresentadora escolada em escândalos!), consciência ser acessada sem defesas, que suas redes sociais, que sempre foram palco para destilarem as piores frases feitas, foram empanturradas, em horas, com mensagens de apoio.
Após o ocorrido, um político, assumidamente apaixonado por cinema — secretamente, um ator que deu muito certo, mas não nas telas de cinema, e sim nos palanques —, fez um pronunciamento em rede nacional. Todas as emissoras de tevê e canais da internet transmitiram ao vivo... Porque ao vivo é mais emocionante. Com esse pronunciamento, sobre a divindade do espírito do ator, ele alcançou a todos, até porque a sua equipe de tradutores garantiu legendas de primeira. Foi assim que o péssimo ator ganhou não um dia do ano para ser comemorado, mas um dia por semana para ser celebrado... Ainda que por apenas um minuto.
Silenciosamente.
Isso se deu logo após o ator pular do quadragésimo terceiro andar do seu prédio, o que tornou sua declaração no programa de tevê ainda mais significativa. Ficou estabelecido, então, o minuto do silêncio, quando o mundo se cala para escutar esse milagre livre dos sons das britadeiras que nunca param de trabalhar. O momento em que todos lamentam os que já passaram por esse mundo complexo, repleto de programas de entrevistas ao vivo e celebridades tão instantâneas quanto certas sopas. E tão insossas quanto, também...
Com hora marcada para acontecer — uma forma de pagamento adiantado pelas perdas que virão, não importa quais ou as condições do ocorrido —, toda sexta, às três da tarde, o mundo para e silencia durante um minuto.
Esse outro homem, que nunca desejou ser ator e gosta do emprego que tem, ele até que aprecia o silêncio. Porém, cansou-se de silenciar em nome do que ninguém sabe explicar do que se trata. Pobre do ator, que foi uma pessoa que morreu foi de coração partido sendo completado com uma bela queda. Mas esse silêncio... Ele gosta de silêncio, mas os da sexta às três da tarde lhe parece infligido, feito uma lei criada para desamparar cidadão.
Ele sorri, faz reverência, e então começa a cantar. Canção preferida, com mensagem que é uma lindeza. Além de cantar, ele dança pela praça, como se ela fosse palco. Ao seu redor, trinta segundos de pessoas em silêncio, loucas para repetirem refrão, que é mesmo uma ótima canção. Eles se seguram até os quarenta e cinco segundos, quando o homem volta ao refrão, e com eles, milhões soltam a voz.
Ele foi convidado para o programa de tevê ao vivo. Educadamente, não aceitou o convite. Ganhou milhares de amigos íntimos em algumas horas, mas não deu certo. Amigo mesmo ele já tem, e não é fã dos instantâneos. Aos poucos, as pessoas aprenderam a esquecê-lo, apesar de, às vezes, mencionarem a quebra do silêncio magistral que ele protagonizou, durante suas conversas.
O político até tentou inventar um dia inteirinho para ele, com direito a ser incluído no calendário como feriado. O homem sorriu, mais uma vez, e pediu ao político que apenas cuidasse bem do seu ofício, que assim, estaria cuidando bem das pessoas que acreditaram nele.
Às vezes, o cantor se lembra do ator, e faz silêncio durante um minuto, às sextas, às três horas da tarde.
carladias.com
Comentários
Perdi até o fôlego da leitura e o senso da realidade. :)