GAROTA, INTERROMPIDA >> Analu Faria
Carmela foi ao quarto pegar alguma coisa. Nem eu nem você saberemos o que é, leitor. Porque Carmela também não sabe. Esqueceu-se do que precisava, no meio do caminho. Aliás, quase na porta do quarto. Entrou mesmo assim. "Vai que eu me lembro." Não se lembrava. Sentou-se na cama e ficou lá uns instantes. "Meu Deus, por que é que a gente fica velha?" Voltou à sala, onde havia iniciado o trajeto. Isso sempre funcionava com a prima Luíza. A parenta era da idade de Carmela, 87 anos, e tinha esses brancos também. Aí era só voltar ao começo do caminho e pronto, lembrava-se de tudo.
Carmela ficou parada no meio da sala espaçosa. Olhou os poucos móveis — será que a resposta estaria ali? Viu que havia deixado a xícara de chá sobre a mesa de leitura, que ficava do lado do sofá. "É por isso que eu não gosto de mesa, a gente acaba colocando tudo ali e não guarda." Lembrou-se da briga que teve com o falecido marido, quando primeiro decoraram a casa, há quarenta anos. Agenor era arquiteto e tinha um olho bom para aquela coisa de arrumação. E queria uma mesa de centro, onde pudesse repousar o uísque e uns livros de arquitetura que o antigo chefe havia dado. Carmela não gostou da ideia. Queria móveis onde se pode guardar coisas, de forma que quando fossem abertos, a coisa guardada - uma joia, um talher, um livro —, não seria simplesmente retirada, mas meio que "descoberta". Carmela riu ao lembrar-se de que Agenor, ao ouvir a explicação para o veto à mesa de centro, cobriu o rosto com a mão direita e disse, pela milésima vez: "Mulher, você é maluca.". O que sempre significava que a vontade dela prevaleceria.
A mesa de leitura, contudo, teve que permanecer. Ganhou de presente da prima Luíza e presente de prima-irmã não se nega. Só lamentava que ficasse colocando a xícara de chá sempre ali em cima, tomando o lugar dos livros. Foi até a mesa, pegou a xícara e se encaminhou para a cozinha, reclamando da idade e dos móveis inúteis. A prima Luíza bem que poderia ter dado um gaveteiro. Ou conselhos melhores. Isso de voltar ao começo do caminho não adiantava nada. Aborrecera-se.
Voltou à sala novamente e pensou que o jeito era continuar fazendo o que fazia antes de ir pegar não-sei-o-quê no quarto. Sentou-se no único sofá da sala e abriu de novo o livro que estava lendo minutos antes daquele aporrinhamento. Não conseguia concentrar-se. Queria porque queria lembrar o que é que ela tanto precisava no quarto. O livro, não era, estava ali. Seria um remédio? Olhou as horas, fez as contas: não, já tinha tomado o da pressão, o da tireoide e o cálcio. Algum documento, talvez? Não, não guardava documentos no quarto. Roupas? Não, ela não ia se trocar. Que diabos! O que era? Deixou o livro de lado e voltou ao quarto.
Sentou-se na cama, fechou os olhos e prometeu a si mesma que só sairia dali quando lembrasse. Inspirou fundo. Tinha medo de ficar gagá e sempre havia se esforçado para não deixar o cérebro envelhecer. Gabava-se de ter memória boa, para uma mulher da idade dela. Não ia deixar a coisa degringolar assim fácil. Expirou. Abriu os olhos. E quase perdeu a fala.
Um anjo, de asas brancas, túnica, aura iluminada, halo e todos os outros enfeites de anjo que se possa imaginar estava plantado ali, na frente dela. A criatura sorriu e estendeu a mão para Carmela, que estava prestes a ter um troço. Olhava a mão do anjo, perfeitamente tocável, perfeitamente humana, e balbuciava palavras soltas, às vezes ininteligíveis. "Mas... mas... o quê?..." O anjo lá, parado, parecendo um homem todo normal, poderia ser o vizinho, poderia ser o padeiro, poderia ser qualquer um, não fosse pelos adereços angelicais.
Carmela abaixou a cabeça. Pensou que pudesse ganhar uns pontos com o gesto, que denota respeito. Mas na verdade queria ganhar tempo. Olhando para baixo, não via o rosto do anjo e não ficava tão atordoada. Assim tinha como botar ordem nas ideias. Alguns segundos depois, mesmo achando os pés do anjo uma coisa fantástica por parecer tão humana, ela conseguiu articular as primeiras frases, a cabeça ainda baixa:
— Você... o senhor... por que está aqui? Eu não sei se sou tão boa assim que... que... mereça uma... uma... visita dessas.
Carmela ouviu a voz do anjo, também humana, demasiadamente humana, e teve coragem de voltar os olhos para ele.
— Eu vim para buscá-la, Carmela. É hora — disse ele, ainda com um sorriso nos lábios.
— Buscar? E onde é que você vai me levar? É hora do quê?
O anjo riu, paternalmente. Era comum que os humanos soubessem, mas não acreditassem que a hora de morrer havia chegado. Já tinha visto a cena tantas vezes! Todos eles, no fundo, entendiam o que estava acontecendo, mas poucos se deixavam levar apenas pela divina presença daquele ser. Era preciso convencê-los, explicar que era tempo de partir. Às vezes era preciso um discurso. Quase sempre era preciso tranquilizá-los. Era preciso confirmar que Deus existia. Era preciso dizer que os parentes iam ficar bem. Era preciso mostrar seu crachá angelical. Era preciso filosofar. Era preciso responder a perguntas. Não, você não tem escolha. Não, eu não posso lhe dar mais tempo, não sou eu quem decide. Pensando bem, era um pouquinho irritante.
— Oi? Aconteceu alguma coisa? — Carmela interrompeu a epifania do anjo.
— Não, Carmela. Está tudo bem.
— É impressão minha ou o senhor está levemente... irritado? Assim... levemente, viu? É só uma observação, eu não estou reclamando. Aliás, o senhor é muito bem-vindo.
— Como?
— Irritado. "Bolado", como dizem os jovens aí.
— Não, Carmela, não estou "bolado". E lembre-se que sou um anjo. Eu não me irrito.
— Ah, sim, desculpe. Mas o senhor dizia... que ia me levar...
— Sim, Carmela, está na hora.
— O senhor quer dizer... morrer? Eu... eu vou morrer?
— É uma passagem, minha querida irmã, não se preocupe.
— Mentira, "passagem", "viagem", esses nomes todos são eufemismos. O senhor sabe o que é um eufemismo?
— Claro que sim, Carmela.
— Aí, ó: tá irritado.
— Não, não estou... Ok, talvez um pouco. Mas me perdoe. Eu não devo me irritar. Respondendo a sua pergunta: sim, eu sei o que é um eufemismo.
— Então eu vou morrer.
O anjo hesitou um pouco, suspirou profundamente, olhou para cima. Carmela teve a impressão de vê-lo contando até dez.
— Isso — respondeu, num misto de secura e resignação.
— Ah, mas não pode ser!
— Como "não pode ser", Carmela?
— Ora, senhor anjo... como é mesmo seu nome?
— Gabriel.
— Nossa, que clichê! Um anjo chamado Gabriel! Isso é coisa do Agenor, não é? Aposto que está rindo da minha cara agora. Ele sabe que eu sempre detestei clichês.
— Não, Carmela, meu nome realmente é Gabriel.
— O mesmo que anunciou o nascimento de São João Batista e Jesus? O mesmo que conversou com Maomé?
— Não. Sou outro. Somos que nem os Buendía. Gostamos de repetir nomes.
— Pois então, senhor anjo Gabriel Buendía, eu não posso morrer agora. Eu vim ao quarto para me lembrar de uma coisa e eu não vou morrer antes de me lembrar.
Gabriel sentou-se na cama, ao lado de Carmela. Olhou para o horizonte, sem expressão. Como quem perde as esperanças.
— Ok, lembre-se aí. Eu espero.
[Continua no dia 19/11]
Carmela ficou parada no meio da sala espaçosa. Olhou os poucos móveis — será que a resposta estaria ali? Viu que havia deixado a xícara de chá sobre a mesa de leitura, que ficava do lado do sofá. "É por isso que eu não gosto de mesa, a gente acaba colocando tudo ali e não guarda." Lembrou-se da briga que teve com o falecido marido, quando primeiro decoraram a casa, há quarenta anos. Agenor era arquiteto e tinha um olho bom para aquela coisa de arrumação. E queria uma mesa de centro, onde pudesse repousar o uísque e uns livros de arquitetura que o antigo chefe havia dado. Carmela não gostou da ideia. Queria móveis onde se pode guardar coisas, de forma que quando fossem abertos, a coisa guardada - uma joia, um talher, um livro —, não seria simplesmente retirada, mas meio que "descoberta". Carmela riu ao lembrar-se de que Agenor, ao ouvir a explicação para o veto à mesa de centro, cobriu o rosto com a mão direita e disse, pela milésima vez: "Mulher, você é maluca.". O que sempre significava que a vontade dela prevaleceria.
A mesa de leitura, contudo, teve que permanecer. Ganhou de presente da prima Luíza e presente de prima-irmã não se nega. Só lamentava que ficasse colocando a xícara de chá sempre ali em cima, tomando o lugar dos livros. Foi até a mesa, pegou a xícara e se encaminhou para a cozinha, reclamando da idade e dos móveis inúteis. A prima Luíza bem que poderia ter dado um gaveteiro. Ou conselhos melhores. Isso de voltar ao começo do caminho não adiantava nada. Aborrecera-se.
Voltou à sala novamente e pensou que o jeito era continuar fazendo o que fazia antes de ir pegar não-sei-o-quê no quarto. Sentou-se no único sofá da sala e abriu de novo o livro que estava lendo minutos antes daquele aporrinhamento. Não conseguia concentrar-se. Queria porque queria lembrar o que é que ela tanto precisava no quarto. O livro, não era, estava ali. Seria um remédio? Olhou as horas, fez as contas: não, já tinha tomado o da pressão, o da tireoide e o cálcio. Algum documento, talvez? Não, não guardava documentos no quarto. Roupas? Não, ela não ia se trocar. Que diabos! O que era? Deixou o livro de lado e voltou ao quarto.
Sentou-se na cama, fechou os olhos e prometeu a si mesma que só sairia dali quando lembrasse. Inspirou fundo. Tinha medo de ficar gagá e sempre havia se esforçado para não deixar o cérebro envelhecer. Gabava-se de ter memória boa, para uma mulher da idade dela. Não ia deixar a coisa degringolar assim fácil. Expirou. Abriu os olhos. E quase perdeu a fala.
Um anjo, de asas brancas, túnica, aura iluminada, halo e todos os outros enfeites de anjo que se possa imaginar estava plantado ali, na frente dela. A criatura sorriu e estendeu a mão para Carmela, que estava prestes a ter um troço. Olhava a mão do anjo, perfeitamente tocável, perfeitamente humana, e balbuciava palavras soltas, às vezes ininteligíveis. "Mas... mas... o quê?..." O anjo lá, parado, parecendo um homem todo normal, poderia ser o vizinho, poderia ser o padeiro, poderia ser qualquer um, não fosse pelos adereços angelicais.
Carmela abaixou a cabeça. Pensou que pudesse ganhar uns pontos com o gesto, que denota respeito. Mas na verdade queria ganhar tempo. Olhando para baixo, não via o rosto do anjo e não ficava tão atordoada. Assim tinha como botar ordem nas ideias. Alguns segundos depois, mesmo achando os pés do anjo uma coisa fantástica por parecer tão humana, ela conseguiu articular as primeiras frases, a cabeça ainda baixa:
— Você... o senhor... por que está aqui? Eu não sei se sou tão boa assim que... que... mereça uma... uma... visita dessas.
Carmela ouviu a voz do anjo, também humana, demasiadamente humana, e teve coragem de voltar os olhos para ele.
— Eu vim para buscá-la, Carmela. É hora — disse ele, ainda com um sorriso nos lábios.
— Buscar? E onde é que você vai me levar? É hora do quê?
O anjo riu, paternalmente. Era comum que os humanos soubessem, mas não acreditassem que a hora de morrer havia chegado. Já tinha visto a cena tantas vezes! Todos eles, no fundo, entendiam o que estava acontecendo, mas poucos se deixavam levar apenas pela divina presença daquele ser. Era preciso convencê-los, explicar que era tempo de partir. Às vezes era preciso um discurso. Quase sempre era preciso tranquilizá-los. Era preciso confirmar que Deus existia. Era preciso dizer que os parentes iam ficar bem. Era preciso mostrar seu crachá angelical. Era preciso filosofar. Era preciso responder a perguntas. Não, você não tem escolha. Não, eu não posso lhe dar mais tempo, não sou eu quem decide. Pensando bem, era um pouquinho irritante.
— Oi? Aconteceu alguma coisa? — Carmela interrompeu a epifania do anjo.
— Não, Carmela. Está tudo bem.
— É impressão minha ou o senhor está levemente... irritado? Assim... levemente, viu? É só uma observação, eu não estou reclamando. Aliás, o senhor é muito bem-vindo.
— Como?
— Irritado. "Bolado", como dizem os jovens aí.
— Não, Carmela, não estou "bolado". E lembre-se que sou um anjo. Eu não me irrito.
— Ah, sim, desculpe. Mas o senhor dizia... que ia me levar...
— Sim, Carmela, está na hora.
— O senhor quer dizer... morrer? Eu... eu vou morrer?
— É uma passagem, minha querida irmã, não se preocupe.
— Mentira, "passagem", "viagem", esses nomes todos são eufemismos. O senhor sabe o que é um eufemismo?
— Claro que sim, Carmela.
— Aí, ó: tá irritado.
— Não, não estou... Ok, talvez um pouco. Mas me perdoe. Eu não devo me irritar. Respondendo a sua pergunta: sim, eu sei o que é um eufemismo.
— Então eu vou morrer.
O anjo hesitou um pouco, suspirou profundamente, olhou para cima. Carmela teve a impressão de vê-lo contando até dez.
— Isso — respondeu, num misto de secura e resignação.
— Ah, mas não pode ser!
— Como "não pode ser", Carmela?
— Ora, senhor anjo... como é mesmo seu nome?
— Gabriel.
— Nossa, que clichê! Um anjo chamado Gabriel! Isso é coisa do Agenor, não é? Aposto que está rindo da minha cara agora. Ele sabe que eu sempre detestei clichês.
— Não, Carmela, meu nome realmente é Gabriel.
— O mesmo que anunciou o nascimento de São João Batista e Jesus? O mesmo que conversou com Maomé?
— Não. Sou outro. Somos que nem os Buendía. Gostamos de repetir nomes.
— Pois então, senhor anjo Gabriel Buendía, eu não posso morrer agora. Eu vim ao quarto para me lembrar de uma coisa e eu não vou morrer antes de me lembrar.
Gabriel sentou-se na cama, ao lado de Carmela. Olhou para o horizonte, sem expressão. Como quem perde as esperanças.
— Ok, lembre-se aí. Eu espero.
[Continua no dia 19/11]
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