ANJO SE NÃO VINGA >> Albir José Inácio da Silva
Quando precisava, minha mãe costurava mortalhas. Eram
camisolas brancas fechadas no pescoço. A morte de uma criança enchia a casa de
silêncios. Foi assim com Miguelinho.
Na sala da vizinha, as mães sussurravam a eficiência dos seus
cuidados para evitar a morte e eventual descuido no acontecido.
— Sarampo não recolhe à toa. É desmazelo! — disparava a mais
exaltada, mas logo fazia cara compungida.
Todas as crianças adoeciam ao mesmo tempo. As mães as juntavam
para que pegassem de uma vez a doença que acometesse algum menino da
vizinhança. Assim ficavam livres.
O restabelecimento ficava por conta da dedicação e habilidade
de cada mãe. Às vezes não dava certo. Ou, suspeitava eu, o pequeno recalcitrava
no desmerecimento.
Uma olhada rápida no caixãozinho era todo o permitido,
depois, para o quintal, sem gritos nem risadas.
Minha pouca teologia não respondia por que o anjo da guarda
abandonou Miguelinho. Que será que ele fez? Malcriação?
— Foi doença também, meu filho! — explicava meu pai. O
“também” sugeria alguma corresponsabilidade de Miguelinho, um garoto respondão.
Mas não me assaltava o medo da morte, meu pai não permitiria
uma coisa dessas. E minha mãe me dava remédio, biotônico e carne de rã.
Já tinha ouvido falar de outros mortos, avôs, bisavós, tios,
mas eles nunca estavam presentes. Miguelinho estava ali.
No caminho para o cemitério, era sábado de aleluia, um bloco
de sujos, que cantava “índio quer apito” e batucava latas, foi silenciado pelos
nossos olhares, e alguns tiraram o chapéu.
Eu gostava das flores do cemitério. Eram as mesmas margaridas
de casa, mas lá o declive do terreno lembrava o manto de Nossa Senhora, que na
imagem tinha flores nos pés.
A volta era quase festiva, com os adultos ralhando por causa
dos nossos gritos e risadas. As mães consolavam:
— Fica assim não, comadre. A senhora tem outros filhos e
ainda pode ter mais. Tudo é vontade de Deus.
O nariz vermelho ainda fungava, já mais conformado.
Os pais, embora falando baixo, comentavam Getúlio, Juscelino
e a renúncia de Jânio Quadros. Eu queria ouvir as conversas, mas também queria
correr atrás dos meninos e puxar o cabelo da prima Ângela.
Fiquei por um momento pensativo, meu pai viu mais tristeza do
que eu sentia e consolou:
— Fica triste não, filho. Quando é anjo, vai pro céu.
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