O GATO - PARTE II >> Zoraya Cesar
Exatamente naquele momento crucial, um fortíssimo trovão ressoou e um raio caiu perto de onde estavam, cindindo uma árvore ao meio e trazendo consigo uma noite escura de temporal. Silvia, a mulher, gritou e fugiu, sem terminar o serviço. Ele tremia, paralisado, malditos nervos, de repente estava mesmo na hora de trocar de profissão. Vou morrer eletrocutado, pensou. Respirou fundo, tentando recuperar o controle e a experiência que os anos de treinamento lhe ensinaram. Um passo de cada vez, seguiu, sem se perder, até chegar à hospedaria.
Entrou resolutamente na recepção, procurando por Silvia, mas encontrou apenas a velha que fazia as vezes de recepcionista, cozinheira, porteira e fofoqueira de plantão.
A velha olhou para ele com olhos remelentos e sagazes, como os de uma ave que olha para um barbante no jardim e não sabe decidir se aquela estranha minhoca era comestível.
— D. Silvia não gosta de chuva nem de gatos, moço. O marido dela fugiu com a amante, uma jovem recepcionista que tinha um gato detestável. Sumiram os três numa noite de chuva como essa.
Atônito, ele subiu para o quarto e se preparou para pensar e agir. Tomou banho, praticou tai chi chuan e, ao terminar, começou a entoar estranhos mantras enquanto tirava da mala alguns de seus apetrechos de trabalho: Bíblia, cristais, velas, guias, búzios... Depositou um copo com água no chão, onde traçou o mais poderoso símbolo de proteção da linha Nagô, acendeu velas e colocou-as junto com cristais nos pontos cardeais; posicionando-se no centro do desenho, movimentou o atame no ar, invocou as Forças da Luz, ajoelhou-se defronte à Bíblia, leu alguns trechos de São Paulo, pegou o Rosário e começou a rezar, concentradamente, todas as 220 contas.
Entrou em meditação profunda, as respostas vindo naturalmente. Começou reconhecendo a canção que ouvira Silvia entoar ao cavar no pé da árvore, uma invocação egípcia aos Espíritos dos Mortos; intuiu o segredo do poço aterrado; o significado de um gato que só ele conseguia ver; a razão de estar ali naquele momento; e o que deveria fazer.
Chovia torrencialmente. De repente, para além do ruído dos relâmpagos, dos trovões e da água pesada da chuva, algo parecido com os miados selvagens de uma sussuarana romperam o som da noite, seguidos por um gorgolejar pavoroso, temperado de pavor e morte, que só ele ouviu. Continuou imóvel em sua posição de lótus, projetando escudos de proteção para os outros hóspedes, pois, quanto a Silvia, só restava aguardar o curso dos acontecimentos
Veio a madrugada, trazendo, paulatinamente, o silêncio. Cessaram os miados ameaçadores, os trovões e relâmpagos, e, por fim, a chuva. Quando a primeira estrela da manhã brilhou, ele se levantou, desfez o círculo mágico, agradeceu a todos os Espíritos que o ajudaram e guardou tudo. Vestiu-se, apanhou uma lanterna, o celular e foi até o carro, pegar uma pá.
Não esperou o gato mostrar-lhe o caminho, pois agora não existiam mais cansaço ou nervos em frangalhos, nada; só a determinação de cumprir a missão para a qual fora convocado. Chegou ao poço com os primeiros raios de Sol, mas nem precisou da pá.
O temporal fizera a maior parte do trabalho, espalhando as pedras, abrindo o poço, lavando a terra e expondo os corpos já meio decompostos, mas identificáveis, de um homem de meia-idade e de uma mulher jovem.
Sem mexer na cena do crime, ligou para a polícia e deu as coordenadas, contando, por alto, a história de uma mulher que, não suportando ser abandonada pelo marido, matou-o e à jovem amante com quem ele fugiria. Nada falou do gato nem das práticas de Magia Negra que prenderam as almas de todas as vítimas à Terra, impedindo-as de descansar em paz.
Voltou à hospedaria, perfeitamente senhor de si, como se nunca tivesse estado doente, para encontrar um verdadeiro pandemônio. Todos do lado de fora, uma ambulância, a velha dos olhos de ave perscrutadora enrodilhada numa manta preta, como uma dona Carochinha de cemitério. Assim que o viu, correu ao seu encontro, para contar a novidade:
— O senhor nem sabe, a patroa enlouqueceu, rasgou a garganta toda com as próprias unhas, morreu ontem à noite, eu nunca tinha reparado que as unhas dela mais pareciam garras... — e ficou a falar sozinha, pois ele continuou andando, sem lhe dar atenção.
Precisava telefonar para um contato na polícia e sumir de cena sem ser interrogado. E precisava, urgentemente, ligar para o Padre Tércio, pois, embora a Deusa Sekhmet, encarnada no gato, tenha feito justiça, todas aquelas almas precisavam de perdão e de um enterro cristão.
Seu nome era Lucrécio Lucas, caçador implacável do Mal que os olhos não veem, que chegara fraco, assustado e cansado, de tanto ver e lutar contra forças que nos fariam enlouquecer de medo. Mas que nunca deixara de entrar em ação e cumprir sua Missão quando chamado.
Ele ainda cogitou em ver se o gato estava enterrado ou não, mas desistiu. Não faria diferença. Que os gatos também descansassem em paz.
Outras aventuras de Lucrécio Lucas
Comentários
Fiquei fã do nosso (já é meu também) herói Lucrécio.
E concordo com o Eduardo - como tem trabalho pra ele! E que ele sempre nos proteja como protejeu os hóspedes do local...
Parabéns!
Cecilia
Vc está cada vez mais interessante!
Claro que fui reler como começava a história do gato.
Já podemos esperar pelo livro de uma história arrepiante, grande suspense, cheia de informações de todo tipo etc etc , que as vezes me prendem mais que a propria crônia. Vamos investir um pouco na formação espiritual do povo????
JC agradeceria...,rs. Sonia
Já estou me viciando, fico aguardando as aventuras que vc tece para nós ...
Bjsss
Yasmin