CACOS PARA UM AUTORRETRATO >> Cristiana Moura
Nem mesmo na minha infância, naquela época em que eu vivia em mim mesmada, passei tanto tempo em frente ao espelho como o faço agora, para pintar autorretratos. Horas a fio, tardes inteiras, madrugadas adentro, meu corpo nu e a incerteza de se era eu que olhava a imagem ou esta que olhava para mim. Quem reflete quem? Sinto-me observada e a minha loucura me seduz.
Na exaustão, entre olhares e pinceladas, a imagem parecia ganhar um desejo próprio, uma luz outra, um movimento além do meu. Entre o olhar e a mão: histórias da minha vida reconstituídas a cada pincelada.
Desde muito pequena mergulho no espelho. Minha grande companhia: a imagem de mim mesma como se pudera transformá-la na irmã que morreu — a fantasia da amiga, tão igual a mim mas sendo outra.
À medida que pinto, vejo a transmutação da imagem do corpo da menina acuada, acanhada, na imagem do corpo da mulher nua, sentada no chão. O espelho me fez companhia a vida inteira. Ocupou o lugar da irmã, numa tentativa vã de remontar nove meses de útero compartilhado, num líquido amniótico espelhado que se manifesta no aquoso do guache sobre o papel.
Transformo as imagens e estas me transformam. Pintei em diferentes formatos, composições, paletas. Pintei-me inteira e em fragmentos refletidos em cacos de um espelho quebrado. E a metade morta de mim, ao passo que pinto, consigo deixá-la partir e permitir-me ficar. O ato de pintar me transforma nesta identidade multifacetária que em seu movimento traz a cura.
Mas o que quero curar? É algo por dentro que não está em uma parte do corpo apenas, é quando me sinto em pedaços, é quando me falta o ar, é aquilo que não aceito em mim.
Minhas pinturas são ex-votos em cor líquida e papel. Meu ex-voto que, talvez contendo em si promessas veladas, nas entrelinhas do nu desvelado, não vai nem à Aparecida, nem `a Canindé. A peregrinação foi de dentro para fora do espelho.
Os pássaros começam a cantar e adormeço sobre os lençóis sujos de tinta. E eu, que antes só orava em versos, agora oro em cores. Já do lado de fora do espelho, posso me ver melhor. Parafraseando Adélia: A uns Deus os quer doentes, a outros quer pintando.
Na exaustão, entre olhares e pinceladas, a imagem parecia ganhar um desejo próprio, uma luz outra, um movimento além do meu. Entre o olhar e a mão: histórias da minha vida reconstituídas a cada pincelada.
Desde muito pequena mergulho no espelho. Minha grande companhia: a imagem de mim mesma como se pudera transformá-la na irmã que morreu — a fantasia da amiga, tão igual a mim mas sendo outra.
À medida que pinto, vejo a transmutação da imagem do corpo da menina acuada, acanhada, na imagem do corpo da mulher nua, sentada no chão. O espelho me fez companhia a vida inteira. Ocupou o lugar da irmã, numa tentativa vã de remontar nove meses de útero compartilhado, num líquido amniótico espelhado que se manifesta no aquoso do guache sobre o papel.
Transformo as imagens e estas me transformam. Pintei em diferentes formatos, composições, paletas. Pintei-me inteira e em fragmentos refletidos em cacos de um espelho quebrado. E a metade morta de mim, ao passo que pinto, consigo deixá-la partir e permitir-me ficar. O ato de pintar me transforma nesta identidade multifacetária que em seu movimento traz a cura.
Mas o que quero curar? É algo por dentro que não está em uma parte do corpo apenas, é quando me sinto em pedaços, é quando me falta o ar, é aquilo que não aceito em mim.
Minhas pinturas são ex-votos em cor líquida e papel. Meu ex-voto que, talvez contendo em si promessas veladas, nas entrelinhas do nu desvelado, não vai nem à Aparecida, nem `a Canindé. A peregrinação foi de dentro para fora do espelho.
Os pássaros começam a cantar e adormeço sobre os lençóis sujos de tinta. E eu, que antes só orava em versos, agora oro em cores. Já do lado de fora do espelho, posso me ver melhor. Parafraseando Adélia: A uns Deus os quer doentes, a outros quer pintando.
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