FANTASIA >> Albir José Inácio da Silva

 

Tudo planejado há uma semana. A cabeça trabalhou rápido quando ouviu que poderia ajudar na obra e receber o dinheiro na sexta-feira: uma roupa nova - que nem precisava ser nova – da feirinha da igreja, uma sandália branca, um chapéu de palhinha e um cordão dourado que viu na feira por oito reais. E um dinheirinho no bolso até quarta-feira pra cerveja, o angu à baiana e um churrasquinho, se alguma mulher merecesse a presença.

 

Acordou cedo, sentindo a agitação do carnaval, mas ficou triste ao lembrar do bolso quase vazio, apenas uns trocados que sobraram do almoço da semana. Trabalhou duro, mesmo com a perna doente, e agora o dono do trabalho desapareceu.

 

Desceu até o Largo do Estácio e, de passagem, perguntou ao Pernambuco pelo patrão desaparecido. O outro gritou com ele que também era empregado e não sabia de nada. Quitério teve certeza de que ele embolsara seu dinheiro.

 

Passou no boteco. Antes o português gostava dele. Nos bons tempos pegava fiado e pagava direitinho. Depois que ficou na pior nem pode mais entrar no estabelecimento. Não chegou a completar o pedido. “Suma daqui, ó filhote de assombração...” gritou o ex-amigo.

 

Foi andando pela Mem de Sá e dobrou pra Tiradentes. Mancava por conta do atropelamento recente e do gesso que tirou com uma semana porque o pé estava ficando roxo. No Largo de São Francisco sua bexiga doía de cheia. Encostou na parede da Faculdade, como faziam outros foliões, fechou os olhos e abriu a calça.

 

Sentiu a borrachada que o jogou no chão. Saiu de lado, ainda sem levantar e ouviu o PM:

 

- Agora tem lei antimijo, se fizer de novo vai em cana.

 

Os outros, que estavam no muro, também se afastaram, mas ninguém apanhou. Só ele. Sentiu a ardência no braço e nas costelas e viu o vergão que se levantou. Uma lágrima de ódio escorreu e ficou secando no rosto preto de poeira.

 

Atravessou a Rio Branco e notou que estava faltando um chinelo. O asfalto derretido agarrava-se à sola do pé. Sentiu sede, gostaria de uma cerveja, mas isso lhe custaria quase todo o dinheiro. Pediu uma caninha da roça de cinquenta centavos num copinho plástico de café. Reclamou alto que estava “batizada”, que era água pura, e levou um empurrão do mulato de olho vermelho.

 

Já na Cinelândia, olhou-se no espelho do Banco e viu sangue no pescoço. Com certeza bateu a cabeça no muro quando foi esculachado pelo PM. Não podia andar por aí assim. No chão, viu um chapéu-cone que alguém abandonou. Ajeitou como pôde o cabelo branco, ralo e sujo. O bico de cartolina caiu de lado escondendo o pescoço com o sangue já seco. A lágrima na poeira do rosto parecia maquiagem. E ele achou bom. Um pierrot. Nunca se vestira de pierrot. Não é que agora tinha uma fantasia?!

 

O coração de Quitério acelerou no ritmo da bateria do Bola Preta. Ele enxergou os estandartes e teve certeza de que o seu carnaval começava. Apenas começava.

 

Obs: Este texto integra o Projeto Crônica de um Ontem e foi publicado originalmente em 15/02/2010.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
que coisa mais triiiisssteee Dom Albir! O verdadeiro lado do carnaval que ninguém vê.
Jander Minesso disse…
Destilou toda a tristeza carnavalesca numa história só, hein Albir?
Soraya Jordão disse…
O Bola preta é a esperança.

Postagens mais visitadas