PIETRAS, ELENA, CAIO >> Sergio Geia

 


Foi num domingo frio, quando o inverno resolveu dar as caras. Mais uma carta para além dos muros em pleno 24/12/1995? Ainda que o final seja um desejo de feliz Natal, pois merecemos. Pesa em 2022. Talvez menos se comparado a 1995, o tempo real, mas pesa. 

Como pesa acordar cedo, abrir o UOL e se deparar com um vídeo que mostra o momento exato em que jogadoras de futsal recebem a notícia da morte da colega, aquela que havia alguns dias dividia a mesma quadra e ganhava os mesmos jogos. Tão jovem. Uma doença que chegou rápido e acabou com tudo. Como entender essas coisas e assimilar o peso de tamanha injustiça do universo? 

Quando o universo retira a vida de uma jovem, ele está sendo injusto pra caralho. Quebra a ordem natural das coisas, fico sem compreender o tamanho da injustiça. 

Fui até preparar o café, as águas pingando como goteira dos olhos. Se fumasse, pegaria um cigarro; se bebesse assim tão cedo, pegaria uísque, sairia na sacada, ficaria a olhar o céu, o céu carrancudo daquele domingo frio de inverno, o horizonte escondido, tentando encontrar respostas que, honestamente, não existem. 

No mercadinho aqui perto de casa, a vida a deslizar suavemente como em qualquer manhã de domingo, contrapeso às loucuras do universo. Apanho o pão, compro laranjas e ameixas, jogo um pouco de conversa fora. Quando estou a pagar, entra o padre sempre tranquilo, cumprimenta a todos, uma senhora pede a bênção. 

Como já estava pesado demais aquele dia, não tive dúvida e, aproveitando a vibe, fui pegar a mensagem no whats. Ela dizia: “Ontem eu assisti um filme tão triste. Sabe a Pietra Costa, que fez aquele documentário sobre a democracia brasileira na Netflix? Ela tem um outro documentário falando sobre a irmã mais velha, a Elena Costa. O professor que indicou. É muito triste.” 

Não tive dúvidas: fui assistir a Elena

Nem sempre esse mesmo universo injusto e cruel às vezes, abraça nossos projetos, nossos sonhos. Ele pode sorrir, ele pode fechar a cara como uma velha rabugenta, ele pode voltar a sorrir. Tal qual uma estrada, talvez o mais importante seja trilhá-lo, sabendo que se está a chover, a ventar, e a fazer frio, ali na frente, só mais um pouquinho, talvez o tempo mude, o sol volte a dar as caras, a poesia volte, o vinho. Poeticamente Pietra desnuda Elena, uma bela carta de amor, embora triste. Triste porque nos solidarizamos com Elena, sofremos com ela diante dos castigos do universo — sempre ele, com sua mãe, com sua irmã. 

Ainda emocionado — eram muitas emoções para poucas horas do dia —, aí sim eu fui beber uma dosinha pra relaxar, eu merecia. 

Lembro-me que aquele domingo correu estranho. Vez em quando a ideia de injustiça surgia a povoar meus pensamentos, a imagem do sorriso doce de Elena, a dor de Pietra, das amigas de Pietra na quadra de esportes — sim, são duas Pietras mesmo —, de Caio, ai, eram tantas dores...

Comentários

André Ferrer disse…
Li ouvindo "My Favorite things" gravada por John Coltrane em 1961. Foi coincidência. Depois, lembrei-me de que se trata da mesma que consta da trilha d'A Noviça Rebelde, filme ao qual o meu pai sempre se referia: "De novo?!" A minha mãe e eu adorávamos e, agora, o "de novo" do meu pai é só uma lembrança. Coltrane toca o tema, jazzista que foi, com todas as lindas improvisações de que era capaz. Assim, também, escutamos as variações sobre o mesmo tema, durante toda a vida, que são esses esbarrões na finitude dos outros. Na nossa.
Zoraya Cesar disse…
Um texto primoroso de tristeza mansa, comentado com igual elegância por André Ferrer. Nada mais digo, pra nao estragar um quadro díptico perfeito Sérgio e André. Nao vou mexer.
whisner disse…
Precisamos nos acostumar com o acaso. Belo texto, Sérgio.
sergio geia disse…
Meus amigos de crônicas e Crônica, agradecido.

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