Nunca fui
de muitos amigos. Pra dizer a verdade, nenhum. Pessoas me aborrecem. Talvez eu
as aborreça também, mas pouco se me dá. Tô me lixando pra todos.
Também
não acredito em sobrenatural. Sou um homem da terra, sempre vivi do roçado,
nunca vi nada que não fosse real. As coisas nascem, crescem, frutificam e
morrem. Animais são para comer. A noite segue o dia e o dia a noite. Simples
assim.
O que não
é simples é ver que os coelhos da minha vizinha de terreno, aquela velha inútil
da d. coisinha, sei lá direito o nome da desgraçada, estão invadindo minha
horta.
Todo dia,
ao vistoriar minhas plantações, encontro uma couve semicomida ou pelo menos uma
arrancada. Não é muita coisa, nem me faria falta, mas eu não faço caridade. Se
não fosse tão meticuloso, talvez nem percebesse. Mas percebi.
Fui lá
bater na casa da disgrama, reclamar.
O casebre
caía aos pedaços, era bem possível que ela mesma roubasse minhas couves para
comer. Ouvi dizer que os vizinhos a ajudavam. Não eu, claro, que não tô aqui
pra ajudar memeia velha.
Ela me
recebeu com olhos esbugalhados de incredulidade. A falsa! Parecia uma bruxa mal
lavada. O rosto encarquilhado, os olhos amarelados, dentes faltando, uma
verruga feia, marrom e peluda bem no meio da testa. Ao falar, de sua boca saía
um bafo de pé-na-cova. Só bastava um empurrão para ela cair de vez em seu
sepulcro.
Com suas
ossudas mãos trêmulas, mostrou-me que só tinha dois coelhos, “dois coelhinhos
só”, que lhe faziam companhia e que viviam presos dentro de casa, que ela
jamais os soltaria para comer a horta de qualquer vizinho, nem mesmo a minha
(passei por cima da ironia, pra mim, ser detestado é um elogio).
Olhei
para os ditos coelhos. Se fosse supersticioso, teria me arrepiado. Tirando as
narinas incessantemente frementes características de sua espécie, em pouca
coisa pareciam 'coelhinhos fofos'. Seus pelos não eram sedosos, mas hirsutos e
duros, espetados como os de um porco-espinho. Seus corpos eram estranhamente
musculosos; as patas, mais grossas que os de um coelho qualquer, e eles não
paravam de mostrar e recolher suas garras afiadas. E os olhos! Não pareciam de
coelho, e sim de raposa. Já cacei muitas raposas, conheço-as. E posso garantir
que aqueles olhos eram de raposa. Em pele de coelho. Enfim, uma raça de coelhos
diferente, talvez.
Mas a velha não me convenceu. Tinha certeza de que a desinfeliz soltava seus
estúpidos coelhos no meu terreno durante a noite a fim de destruir minha
plantação. Ou talvez fossem treinados para roubar e levar pra ela. Saí
ameaçando retaliação se acontecesse de haver dano à minha propriedade
novamente.
Se até
então era uma ou outra couve comida ou sumida, desde que visitei a fedorenta da
vizinha, as coisas mudaram. Agora, dia sim, dia não, via uma parte um pouco
maior de minha plantação pisoteada, devorada ou arrancada da terra.
Sei que
essas pestes têm hábitos noturnos, eu é que não podia ficar de tocaia durante a
noite toda. Até tentei, uma ou duas vezes, mas foi infrutífero, eu nunca vi ou
ouvi nada.
Não sou
tão bom caçador assim que perceba pegadas de coelho na terra. Isso é coisa pra
rastreador de filme, não pra vida real. Humanos não são preparados para isso.
Mas cachorros são.
Aluguei
dois cães, um beagle e um bulldog – um para farejar e caçar; outro para agarrar
e matar. Se pegassem coelhos selvagens, tudo bem. Se fossem os da velha, melhor
ainda. Eu queria mesmo que fossem os da desgrenhada. Que se dane.
Naquela
noite soltei os cães e fiquei aguardando, excitado, em casa. Estava chovendo e
frio, não ia eu sair junto pra caçar, isso era trabalho deles. Ademais, o
sujeito que os alugou garantiu que eram infalíveis.
A noite
foi passando e nada de os cães voltarem. A chuva tinha virado um aguaceiro
sinistro, com raios enormes e trovões ribombantes e ensurdecedores, eu nada
podia vislumbrar ou escutar afora isso.
Desisti
de esperar e deitei, na crença que, ao amanhecer, os cães voltariam com meu
prêmio. Dormi o sono dos apaziguados. Até sonhei que me traziam a cabeça da
velha malfadada.
O sol
nasceu radioso, nem parecia que um dilúvio caíra na noite anterior. Escancarei
a porta, ansioso por ver sangue, pelos e restos de coelho.
Nada. Não
havia nada. Nem os cães.
Cachorros
boçais, nem pra pegar reles coelhos serviam. Que ao menos tivessem impedido os
pulhas peludos de destruir minha horta já estava de bom tamanho.
Peguei
minha espingarda e fui para o campo, tentar descobrir o que acontecera. Depois
iria à cidade esfregar na cara do sujeito que alugara os cães que ele era um
safado, e exigiria meu dinheiro de volta. Ninguém me passa a perna!
Não sei
se custei a ver ou se custei a acreditar em meus olhos.
De um dos
cães, só sobraram restos. Algum animal selvagem e feroz o havia destroçado.
Demorou até que eu encontrasse o outro, ou parte dele, entre arbustos. Parecia
que ele tinha participado de uma rinha violenta e levara a pior.
Não tive
remédio que não pegar o corpo morto de um e o destroçado do outro e levar para
o dono deles. Se eu não os mostrasse, ele poderia achar que eu os roubara ou mentira
sobre seu destino, ninguém acreditaria em mim.
Ele,
realmente, não só não acreditou como achou que eu os tinha envolvido em alguma
aposta. O sujeito chorou quando viu os animais. Que idiota, onde já se viu
chorar por cachorro. Ou qualquer outro bicho? Mas ele chorou e depois teve a
mais absurda das reações. Me socou a cara. Não indenizei coisa alguma depois
disso. Aleguei que aquelas bestas não serviram pra nada e ainda se deixaram
matar, ou seja, não cumpriram com o acordado. O sujeito, ainda lacrimoso, disse
que só não me matava porque meu destino estava traçado, ele não precisava sujar
as mãos.
Que cretino, achar que eu ficaria amedrontado. Voltei pra casa, tranquilo. Ninguém me passa a perna.
Continua dia 14 de outubro
Comentários
já entrou para a listinha (que não é listinha pequena) dos preferidos, mesmo sendo a primeira parte
e que venham as mortes!
Eu não teria dormido, de tanto pavor.
Fiquei com pena dos cães. Mas Zoraya é assim mesmo, implacável.
Só falta dizer que esses coelhos são daquela raça cujos machos põem ovos de chocolate uma vez ao ano.
Ainda sobre coelhos, quem acha que eles não podem ser cruéis não deve conhecer o Pernalonga.