OS COELHOS - 1ª parte >> Zoraya Cesar

 


Nunca fui de muitos amigos. Pra dizer a verdade, nenhum. Pessoas me aborrecem. Talvez eu as aborreça também, mas pouco se me dá. Tô me lixando pra todos.

 Também não acredito em sobrenatural. Sou um homem da terra, sempre vivi do roçado, nunca vi nada que não fosse real. As coisas nascem, crescem, frutificam e morrem. Animais são para comer. A noite segue o dia e o dia a noite. Simples assim.

 O que não é simples é ver que os coelhos da minha vizinha de terreno, aquela velha inútil da d. coisinha, sei lá direito o nome da desgraçada, estão invadindo minha horta.

 Todo dia, ao vistoriar minhas plantações, encontro uma couve semicomida ou pelo menos uma arrancada. Não é muita coisa, nem me faria falta, mas eu não faço caridade. Se não fosse tão meticuloso, talvez nem percebesse. Mas percebi. 

 Fui lá bater na casa da disgrama, reclamar. 

 O casebre caía aos pedaços, era bem possível que ela mesma roubasse minhas couves para comer. Ouvi dizer que os vizinhos a ajudavam. Não eu, claro, que não tô aqui pra ajudar memeia velha.  

 Ela me recebeu com olhos esbugalhados de incredulidade. A falsa! Parecia uma bruxa mal lavada. O rosto encarquilhado, os olhos amarelados, dentes faltando, uma verruga feia, marrom e peluda bem no meio da testa. Ao falar, de sua boca saía um bafo de pé-na-cova. Só bastava um empurrão para ela cair de vez em seu sepulcro.

 Com suas ossudas mãos trêmulas, mostrou-me que só tinha dois coelhos, “dois coelhinhos só”, que lhe faziam companhia e que viviam presos dentro de casa, que ela jamais os soltaria para comer a horta de qualquer vizinho, nem mesmo a minha (passei por cima da ironia, pra mim, ser detestado é um elogio). 

 


Olhei para os ditos coelhos. Se fosse supersticioso, teria me arrepiado. Tirando as narinas incessantemente frementes características de sua espécie, em pouca coisa pareciam 'coelhinhos fofos'. Seus pelos não eram sedosos, mas hirsutos e duros, espetados como os de um porco-espinho. Seus corpos eram estranhamente musculosos; as patas, mais grossas que os de um coelho qualquer, e eles não paravam de mostrar e recolher suas garras afiadas. E os olhos! Não pareciam de coelho, e sim de raposa. Já cacei muitas raposas, conheço-as. E posso garantir que aqueles olhos eram de raposa. Em pele de coelho. Enfim, uma raça de coelhos diferente, talvez. 

Mas a velha não me convenceu. Tinha certeza de que a desinfeliz soltava seus estúpidos coelhos no meu terreno durante a noite a fim de destruir minha plantação. Ou talvez fossem treinados para roubar e levar pra ela. Saí ameaçando retaliação se acontecesse de haver dano à minha propriedade novamente.

Se até então era uma ou outra couve comida ou sumida, desde que visitei a fedorenta da vizinha, as coisas mudaram. Agora, dia sim, dia não, via uma parte um pouco maior de minha plantação pisoteada, devorada ou arrancada da terra. 

Sei que essas pestes têm hábitos noturnos, eu é que não podia ficar de tocaia durante a noite toda. Até tentei, uma ou duas vezes, mas foi infrutífero, eu nunca vi ou ouvi nada. 

 Não sou tão bom caçador assim que perceba pegadas de coelho na terra. Isso é coisa pra rastreador de filme, não pra vida real. Humanos não são preparados para isso. Mas cachorros são. 

 Aluguei dois cães, um beagle e um bulldog – um para farejar e caçar; outro para agarrar e matar. Se pegassem coelhos selvagens, tudo bem. Se fossem os da velha, melhor ainda. Eu queria mesmo que fossem os da desgrenhada. Que se dane. 

 Naquela noite soltei os cães e fiquei aguardando, excitado, em casa. Estava chovendo e frio, não ia eu sair junto pra caçar, isso era trabalho deles. Ademais, o sujeito que os alugou garantiu que eram infalíveis. 

 A noite foi passando e nada de os cães voltarem. A chuva tinha virado um aguaceiro sinistro, com raios enormes e trovões ribombantes e ensurdecedores, eu nada podia vislumbrar ou escutar afora isso. 

 Desisti de esperar e deitei, na crença que, ao amanhecer, os cães voltariam com meu prêmio. Dormi o sono dos apaziguados. Até sonhei que me traziam a cabeça da velha malfadada. 

 O sol nasceu radioso, nem parecia que um dilúvio caíra na noite anterior. Escancarei a porta, ansioso por ver sangue, pelos e restos de coelho. 

 Nada. Não havia nada. Nem os cães. 

 Cachorros boçais, nem pra pegar reles coelhos serviam. Que ao menos tivessem impedido os pulhas peludos de destruir minha horta já estava de bom tamanho. 

 Peguei minha espingarda e fui para o campo, tentar descobrir o que acontecera. Depois iria à cidade esfregar na cara do sujeito que alugara os cães que ele era um safado, e exigiria meu dinheiro de volta. Ninguém me passa a perna!

 Não sei se custei a ver ou se custei a acreditar em meus olhos. 

 De um dos cães, só sobraram restos. Algum animal selvagem e feroz o havia destroçado. Demorou até que eu encontrasse o outro, ou parte dele, entre arbustos. Parecia que ele tinha participado de uma rinha violenta e levara a pior. 

 Não tive remédio que não pegar o corpo morto de um e o destroçado do outro e levar para o dono deles. Se eu não os mostrasse, ele poderia achar que eu os roubara ou mentira sobre seu destino, ninguém acreditaria em mim. 

Ele, realmente, não só não acreditou como achou que eu os tinha envolvido em alguma aposta. O sujeito chorou quando viu os animais. Que idiota, onde já se viu chorar por cachorro. Ou qualquer outro bicho? Mas ele chorou e depois teve a mais absurda das reações. Me socou a cara. Não indenizei coisa alguma depois disso. Aleguei que aquelas bestas não serviram pra nada e ainda se deixaram matar, ou seja, não cumpriram com o acordado. O sujeito, ainda lacrimoso, disse que só não me matava porque meu destino estava traçado, ele não precisava sujar as mãos. 

Que cretino, achar que eu ficaria amedrontado. Voltei pra casa, tranquilo. Ninguém me passa a perna. 


Continua dia 14 de outubro

Comentários

branco disse…
que coisa! incrível como este conto está imagético, pude, sem me esforçar, imaginar o ”bronco” em suas maquinações e esperas e resmungos. falar algo sobre a habilidade da escrita seria como publicar uma notícia que todos já sabem, zoraya escrevendo sobre o que domina melhor, ou seja, zoraya sendo ela mesmo, the best!
já entrou para a listinha (que não é listinha pequena) dos preferidos, mesmo sendo a primeira parte
e que venham as mortes!
Antonio Fernando disse…
Já estou elocubrando em minha mente vários desfechos. Expectativa boa!
Anônimo disse…
Pelo visto, os ditos coelhinhos são do capeta!
André Ferrer disse…
Se quer criar um monstro absoluto, escolha a antítese do monstro. Coelhos são eficientes. Zoraya colocando lenha na ansiedade! Dia 14: a carnificina.
Marcio disse…
Puxa vida, que sorte não ter conseguido ler ainda ontem à noite, quando foi anunciada a publicação do texto.
Eu não teria dormido, de tanto pavor.
Fiquei com pena dos cães. Mas Zoraya é assim mesmo, implacável.
Só falta dizer que esses coelhos são daquela raça cujos machos põem ovos de chocolate uma vez ao ano.
Ainda sobre coelhos, quem acha que eles não podem ser cruéis não deve conhecer o Pernalonga.
Érica disse…
Êta bichinha má... Coitados dos cachorros... Coelhos maus...kkk

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