NOTÍCIAS DE MINHA MÃE >> Sergio Geia

 


Hoje escrevo para as amigas e os amigos que querem notícias, que sofrem comigo e com o desejo de que fique a lembrança de alguém alegre, sorridente e festiva, segurando seu cigarrinho entre os dedos, as unhas vermelho-sangue; que fogem da visita para que essa lembrança que dói não apague a outra, a boa. Desculpem. Quem sabe se em palavras a dor é menos doída. 

Foi num feriado federal. Sexta à tarde, frio, sol e vento. Cheguei, parei o carro, comprei 30 minutos de zona azul, apertei a campainha. 

Sempre saio dali meio deprimido. Me dói testemunhar a impotência e o fim. O fim, às vezes, pode ser rápido, não tão doloroso, ou sim, muito doloroso. Mas às vezes o fim pode ser lento, sofrível, indigno. 

Entrei, lavei as mãos com álcool gel, e fui até ela que, na sala de TV, sentada, assistia ao filme da sessão da tarde. Normalmente ela está no quarto, cama hospitalar, deitada, dormindo. Certa vez não acordou, apesar de nossas insistências. Coloquei até as suas músicas preferidas como fiz tantas vezes, quando ela ainda cantarolava sem errar as letras, mas nem com Luiz Ayrão ou Elymar Santos teve jeito. Então, vendo-a na sala de TV, compenetrada, de olho na televisão, me animei. 

Passei perto dela, ela arregalou os olhos e me encarou. Depois, sem falar nada, voltou seu olhar para o filme. Não entendia quem era aquele sujeito que se sentara ao seu lado, que pegara em sua mão e que lhe chamava de mãe, que lhe perturbava o sossego e o filme. Perguntei se o filme estava bom. 

 — O filme está bom. 

Não sabia se era uma resposta à minha indagação, ou um eco baixinho de minhas palavras. Sim, na verdade eu sabia. E repetindo as palavras da enfermeira, ainda insisti perguntando-lhe sobre a fisioterapia, como ela se negara a fazer os exercícios. Ela me olhou, olhou, e, em silêncio, voltou para o seu filme. 

A primeira vez que ela me olhou e não me reconheceu foi um baque. Já havia acontecido isso com outras pessoas, mas comigo, ela me olhava, e mesmo que não soubesse responder na hora quem eu era quando indagada, vez em sempre no meio de difíceis e raras conversas ela soltava um Serginho; isso me aliviava. Eu pensava, hum, lá no fundo, bem lá no fundo, ela ainda se lembra. Só que agora não há mais Serginho, há um olhar vago, perdido. Dói. 

Minha mãe, segundo os neurologistas, sofre de uma doença chamada demência vascular, muito parecida com Alzheimer. Quando me perguntam o que ela tem, eu digo sem pestanejar: Alzheimer. Fica mais fácil a compreensão de quem me escuta, e a cena criada em sua mente sobre as possíveis consequências do Alzheimer quase sempre bate com o estado de minha mãe. Ela não reconhece mais as pessoas, pouco fala, alimenta-se por sonda — não consegue mais deglutir os alimentos —, geralmente passa o dia inteiro deitada, olhando um vazio. 

Em certo momento a enfermeira ajoelhou-se ao lado dela e, após algumas carícias em seu cabelo, perguntou-lhe quem era esse moço que estava ao seu lado. Eu gelei já antevendo a resposta ou a falta de. Ela não soube o que dizer. A enfermeira insistiu, ela me olhou e nada. Até que a enfermeira perguntou: não é o seu filho? Daí sim ela respondeu com firmeza: 

— Meu filho? Não. Não é o meu filho. 

Pelo celular comprei mais uma 1 hora de zona azul e fiquei ao lado de minha mãe, acompanhando-a no filminho da televisão. Percebi que seu olhar estava na televisão, mas qualquer movimento no entorno ela se virava com o olhar curioso; achei engraçado. 

Ao me despedir, fiz um carinho em seus cabelos, fica com Deus, eu disse, ela me olhou sem entender. Na minha inocência eu lia em seu olhar um pedido de fica mais, não vai embora, apesar de tudo eu gosto. Dei-lhe um beijo. Em silêncio, ela voltou o olhar para a televisão.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Sergio, essa dor nao tem alívio. Nem vou tentar falar palavras de consolo. Só quem passa por isso sabe qd deixar a dor tomar conta, quais os paliativos pra diminuir ou disfarçar. Na falta do que dizer que possa ajudar, digo o óbvio: que excelente pessoa humana e filho você é!
André Ferrer disse…
Quando ouço a expressão "lugar de fala", penso em filhos como você, Sérgio. Vejo-os muito no meu ofício. Não há empatia que nos faça sentir o mesmo que vocês. Não há modo de quem não vive, expressar-se a respeito. Abraços e força!
sergio geia disse…
Obrigado, meus queridos. É duro acompanhar o declínio e a iminência do fim de pessoas que amamos. Ainda mais quando isso é vagaroso. Mas temos de seguir, é a vida.

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