DA MENTIRA BEM CONTADA >> Carla Dias
Ela tem o hábito de nunca concordar plenamente. Consente, mas nunca sem apresentar dúvidas, daquelas possíveis de serem utilizadas, durante processos judiciais. Há quem chame essa habilidade de inteligência, mas se trata mesma é da falta dela aos que se permitem ser convencidos, porque dá trabalho lutar contra, principalmente quando é a favor de anônimos.
No café da manhã, mente ao marido, apenas para treinar outra habilidade adquirida, com serenidade e desdém. Na hora do almoço, quando se encontra com o filho mais velho, aponta todos os defeitos dele, como se fizesse uma longa oração, garantindo assim que ele compreenda o poder que a mãe exerce no futuro sonhado por ele. São as conexões dela, criadas por ousadias que coram até os mais descarados déspotas, que o levarão ao lugar que ele acredita ser dele.
À noite, ainda no escritório, delicia-se com pequenos prazeres: manter o assistente até mais tarde, no dia em que ele tem aquele concerto para o qual comprou ingressos há meses. Pedir ao seu subalterno que se apresente para uma longa reunião sobre o que não é relevante, apenas burocrático, caberia bem no horário comercial, finalizando com a pergunta: o que você acha desse esmalte? E ao estender a mão, observá-lo morder o lábio, enquanto deseja arrancar a cabeça dela em uma mordida.
Ela é assim, mas quem pode culpá-la? Deram a ela não apenas as armas para a batalha, mas também os endereços completos dos seus inimigos. Aproveitou-se dessa capacidade do outro de abrir espaço para criaturas feito ela, que se enxergam como detentoras da perfeição e acima da maioria, frequentando o mesmo patamar ao qual poucos conseguiram alcançar.
Os poucos que decidem o destino de muitos, sem consciência que os impeça de ignorar suas dores e as injustiças sofridas por eles.
Acha o outro diminuto, um catálogo de serventias. Por isso não remói culpa ao terceirizar afeto: quem abraça a filha, com requintes de amor incondicional, é a tia, aquela idiota que sonha, enquanto ela realiza.
O marido, cordial nas suas aventuras, vive sua outra vida sem permitir que a tal alcance a esposa, porque ela sabe ameaçar e jurou que o faria engolir cada escândalo que viesse à tona.
As pessoas a temem, porque deram a ela o poder que ela acredita que é de sua propriedade, mas é emprestado. Ela coloca em prática um poder que intimida e fere, sorri em plena tragédia e minimiza perdas irreversíveis, porque lhe permitem isso. A família, os amigos que não são conquistados, mas adquiridos por meio de ameaças sutis na apresentação e apocalípticas na prática. Os funcionários, acostumados a se render para manter o emprego. Os aliados, que mesmo sendo da mesma laia, não chegam aos pés do que ela, com um frio sorriso e um olhar blasé pode fazer.
Sentada na sala de sua casa, uma xícara de chá na mão e uma garrafa de uísque à espera do daqui a pouco. Lê o artigo da revista que a engrandece pela sua capacidade de fazer as coisas acontecerem. Que a elogia pela habilidade em conquistar terreno em um meio majoritariamente masculino, como se ela mesma não vandalizasse a existência das suas companheiras de rotina. Falam sobre a beleza da sua família, os corpos saudáveis, as roupas impecáveis, os estudos dos filhos em instituições de ensino de qualidade. Fala sobre a gentileza dela em promover projetos sociais que beneficiam os menos favorecidos, ou como ela gosta de dizer, os miseráveis. Ela pensa – olhando para os pés calçados em uma sandália que comprou, sentindo prazer em pensar que o custo dela pagaria três meses de salário do zelador do prédio – que pagou o necessário para que sua imagem não coincida com a sua verdade.
Fecha a revista, finaliza o café com um último gole. Serve-se de uísque e brinda a si mesma, enquanto pensa em grandes ações que farão do seu dia seguinte não apenas um dia de sucesso, mas também de prazer em fazer tantos acreditarem que ela é melhor, mais forte do que eles.
Imagem: “L'Allégorie de la Simulation” (Alegoria da Simulação) © Lorenzo Lippi
Comentários
Carla, vc é, decididamente, uma pessoa boa. Fosse um conto meu eu finalizaria ela envenenada no uísque do daqui a pouco...
É diferente na escrita, mas não na percepção. Há muitas referências feito este personagem por aí, não? E às vezes eu me rendo a eles.
Zoraya, não sei sobre a bondade, mas certamente eu tenho de acreditar que as pessoas feito esta personagem pagam a conta em algum momento. É triste observar quem não dá a mínima para o outro.
Clara, obrigada!
E, sim, o final da Zoraya é muito mais justo... rs.
Alfonsina, obrigada.
Ah, a sogra francesa da Nina... 😊