UM ESTRANHO CAFÉ >> Zoraya Cesar
A cena era insólita: uma velha senhora, bem vestida de preto da cabeça aos pés, caminhava serenamente pela calçada. A hora? Três da madrugada. Onde? Por ruas onde bares e inferninhos estranhos recebiam gente esquisita.
Ela parou frente a um portão verde, acima do qual um letreiro de neon enfraquecido pelo uso anunciava o nome da espelunca: ”Café de los Olvidados”. Ela empurrou a porta e entrou.
No salão, homens e mulheres dos mais diversos tipos se espalhavam pelo ambiente – travestis, alcagüetes, policiais, bandidos, caçadores de recompensas, aventureiros, jogadores profissionais e outros, inclassificáveis pelos padrões comuns: espécimes soturnos, muitos de aparência sinistra, gente que há muito não via a luz do dia. No ar, um cheiro de suor, cigarro, bebida, crueldade, medo, coragem, sombras e segredos inconfessáveis – cheiro de humanidade.
Alguns dos presentes levantaram a cabeça ou interromperam o que estavam fazendo. Analisaram a figura da velha senhora, um decalque saído diretamente de uma história da D. Carochinha, com seu aspecto de plácida vovó, cabelos brancos elegantemente arrumados e presos por um pente de marfim, óculos de osso de tartaruga, sapatos estilo mocassim, colar de pérolas e a bengala, que usava na mão esquerda. Se a aparência da recém-chegada já não fosse impactante o suficiente, a bengala seria um personagem à parte. Era grande, de madeira maciça – um conhecedor apostaria ser de ébano, talvez pau-ferro – finamente entalhada e encimada por uma cabeça de urso em prata de lei. Se alguém examinasse a bengala mais atentamente, poderia, quem sabe, perceber que a cabeça do urso era removível, e continha uma fina e afiada lâmina de aço, forjada pelo melhor fabricante de Toledo. Nas mãos de uma velha e inocente senhora, um auxílio à locomoção; nas mãos de um expert, uma arma mortal. Mas ninguém se aproximou o suficiente para ver a bengala de perto, no entanto.
O exame durou poucos segundos. Em um lugar frequentado por pessoas incomuns, por que seria estranho uma vovozinha adentrar o salão em plena madrugada? O murmúrio das conversas tornou a se misturar ao barulho das máquinas de vídeo-pôquer e à música que saía da caixas de som – nada reconhecível a ouvidos acostumados ao main stream das rádios convencionais; eram músicas gregas, tailandesas, filipinas... As pessoas voltaram a seus afazeres. Ninguém a interpelou nem a olhou por uma segunda vez.
O salão, à primeira vista, era tosco, mal iluminado e mal arrumado. Parecia que alguém jogara todos os móveis lá dentro, às pressas, e esquecera-se de arrumá-los mais tarde. Um observador mais atento, porém, perceberia que esse alguém gastara tempo e dinheiro para dispor os móveis de tal forma que os fregueses pudessem circular com liberdade sem se esbarrarem; ver quem entrava no recinto tão logo a porta fosse aberta; fugir pelo grande portão situado aos fundos, caso fosse necessário. A iluminação destacava quem entrasse, mas deixava o resto do ambiente quase penumbroso. Os móveis eram antigos, alguns vieram de casas demolidas e do ferro-velho, e em muitos havia rachaduras ou pedaços quebrados. Naquela semi-escuridão, poderiam parecer que vieram do lixo, mas nada mais longe da realidade.
Nas paredes, pintadas de ocre, havia dois alvos para dardos, fotos e pinturas de espiões famosos como Sir Francis Walsingham e Mata Hari, e também de piratas, entre eles, Anne Bonny e Edward Teach. Quatro bandeiras Jolly Roger foram espalhadas pelos cantos. Ao fundo do salão, um grande e largo balcão de madeira, que lembrava muito mesmo o daqueles vistos em filmes de far-west. Atrás dele, uma máquina de café expresso, bebidas diversas, e, pasmem-se – se acharem ser o caso – um espremedor industrial para fazer suco de laranja. Ao lado da prateleira das garrafas, um quadro negro, no qual estava disposto o cardápio da casa, escrito em giz colorido, com letra caprichada e legível.
Marta Atanasiou andou calmamente, apoiada por sua bengala, por entre as cadeiras desalinhadas, a mesa de bilhar, os clientes que circulavam de lá para cá e os que permaneciam sentados em seus lugares, comendo ou bebendo. Chegou ao balcão, pediu uma garrafa de água com gás e limão, sem gelo, por favor. O atendente, um jovem magricela, vagamente assemelhado a um Iggy Pop de cabelos louros oleosos que há muito pareciam não ver um sabonete, cortados no melhor estilo Emo, nada falou, apenas serviu-lhe.
A velha senhora sentou-se à mesa e bebeu com deleite, como se tratasse do mais fino vinho, enquanto escolhia o que comer. Pediu um sanduíche de pastrami, o qual comeu tão concentradamente quanto bebera a água. Depois de engolir o último pedaço, abriu a bolsa, pegou um cigarro. O atendente saiu de trás do balcão, acendeu-o e voltou sem nada dizer.
Quase em estado nirvânico, Marta Atanasiou aspirou e soprou a fumaça, apreciando os anéis que saíam de sua boca e dançavam no ar, vagarosamente se dissolvendo, como fantasmas ao vento. Ao terminar, apontou para a máquina de café, aproximando o dedo indicador do polegar, naquele gesto universal de quem pede uma pequena xícara.
O EmoBoy agachou-se atrás do balcão, pegou uma caixa, uma xícara, e colocou-as em frente à velha. Na caixa, uma pistola Glock modelo G21 gen4, adequada para canhotos. Na xícara, não café, mas uma dose de ouzo, puro. O jovem atendente ficou a olhar a mulher, com respeito, vendo-a sorver a intragável bebida grega com o mesmo prazer com que bebera a água.
Marta Atanasiou deixou R$ 28 reais na mesa, pagando o que consumira mais os 10% de praxe. Guardou a pistola na bolsa, levantou-se e saiu, tão discretamente quanto chegara, batendo sua bengala,. E ninguém lhe perguntou coisa alguma.
Comentários
Martha
Prefiro comentar diretamente com a Criadora (observe o "c" maiúsculo), para evitar os intermediários desnecessários.
Vai ter continuação? Tive a impressão que sim. Prefiro comentar após a última parte. Em caso afirmativo, aguardo a seqüência. Em caso negativo, vou ter que me contentar com a única parte, e aí então comentarei (decepcionado, pois estou curioso sobre uma eventual continuação).
Beijos suspeitos (de quê?). Ou melhor, beijos confessadamente culpados (de quê?).
Onde já se viu deixar a gente esperando duas semanas para saber o que a Sra. Atanasiou vai aprontar!!!
Será que ela é uma corajosa justiceira ou uma perversa criminosa?
se for do mal, será que Felipe Espada conseguirá impedir o intento criminoso de uma senhora tão distinta e poderosa?
só você pode nos torurar assim, meu bem? rsrs...
beijo
E essa senhorinha Marta, hein? É do babado... Para mim não precisa de continuação, fica por conta da imaginação vislumbrar. Levando em consideração que ela já carrega com um certo "carinho" sua bengala/arma e vem buscar outra, não é impossível que seja uma profissional, como disseram em comentário anterior. Para cada perfil de vítima e de matador, um perfil de arma. Aposto que William, o ordinário, preferiria a bengala... rs
Bjkssss