UM TIRO NO ESCURO >> Whisner Fraga
- Quem atirou em quem? – provoco minha mãe.
- Uai, foi você que atirou no seu irmão. – ela responde, convicta.
Isso aconteceu nos anos 1980, bem no começo. Naquela época era tudo meio inconsequente. Meu pai havia nos presenteado com uma espingarda de pressão. Com que cargas d’água alguém teria a brilhante ideia de dar uma arma para duas crianças? Pois é, isso era normal. Como era normal também passearmos pela cidade em um Fusca, todos sem cinto de segurança e felizes como nunca. Tínhamos a impressão de que tudo era meio permitido, mas lógico, dentro de parâmetros mais ou menos razoáveis, que levavam em conta o respeito ao próximo e o amor incondicional à família.
Mas vejam bem: ninguém ia ao Ministério Público denunciar uma marca de chocolates que fabricava um produto para infantes que nada mais era do que um cigarro comestível. E ainda por cima a caixinha da mercadoria ostentava um moleque negro com um dos cilindros entre os dedos, numa pose de fumante.
Era tudo meio maluco. Eu acompanhava minha mãe ouvindo Raul Seixas no rádio de pilhas, enquanto torcia nossas roupas imundas, na esperança de nos entregar, todas elas, no dia seguinte, branquinhas e cheirosas. E tudo isso à base de um sabão caseiro que esfolava até a alma dos dedos. Não digo que hoje seja mais fácil criar um filho, mas convenhamos, uma fralda descartável ajuda bastante.
Tínhamos a rua e ela era tão perigosa quanto é hoje. Havia os carros descontrolados, os motoristas bêbados, as motos a todo vapor, os paralelepípedos soltos como armadilhas propositais. Tudo era afiado ou pontiagudo, menos a dedicação de dona Izolina. Perto da janta ela nos gritava e, chateados, nos recolhíamos para a sala. Havia uma mesa e todos nos sentávamos, juntos, para celebrarmos mais um dia em que nada nos faltou.
Hoje vejo Ana cuidando de Helena e concluo que a natureza é sábia. O amor, a abnegação, o sacrifício, a felicidade, o sobressalto, estão ali, transmutados para uma nova geração. O que ela recebeu está sendo transferido para nossa filha. Os objetos parecem mais arredondados, não há armas em casa, mas os perigos são os mesmos: um aranhão em Helena dói tanto quanto um hematoma sofrido em nossa infância.
Ah, mãe, foi eu que atirei em meu irmão e logo após o grito dele, estridente, pesaroso, saí gritando igualmente pela casa, desolado, porque havia assassinado um parente tão próximo. Mas nada acontecera, nem uma esfoladela. Ele usava uma bermuda jeans e eu, com minha pontaria genial, havia acertado a nádega direita, de modo que o pequeno projétil se intimidara diante da força do tecido. Foi assim, mãe. Agora a senhora já pode contar para todos a história correta.
- Uai, foi você que atirou no seu irmão. – ela responde, convicta.
Isso aconteceu nos anos 1980, bem no começo. Naquela época era tudo meio inconsequente. Meu pai havia nos presenteado com uma espingarda de pressão. Com que cargas d’água alguém teria a brilhante ideia de dar uma arma para duas crianças? Pois é, isso era normal. Como era normal também passearmos pela cidade em um Fusca, todos sem cinto de segurança e felizes como nunca. Tínhamos a impressão de que tudo era meio permitido, mas lógico, dentro de parâmetros mais ou menos razoáveis, que levavam em conta o respeito ao próximo e o amor incondicional à família.
Mas vejam bem: ninguém ia ao Ministério Público denunciar uma marca de chocolates que fabricava um produto para infantes que nada mais era do que um cigarro comestível. E ainda por cima a caixinha da mercadoria ostentava um moleque negro com um dos cilindros entre os dedos, numa pose de fumante.
Era tudo meio maluco. Eu acompanhava minha mãe ouvindo Raul Seixas no rádio de pilhas, enquanto torcia nossas roupas imundas, na esperança de nos entregar, todas elas, no dia seguinte, branquinhas e cheirosas. E tudo isso à base de um sabão caseiro que esfolava até a alma dos dedos. Não digo que hoje seja mais fácil criar um filho, mas convenhamos, uma fralda descartável ajuda bastante.
Tínhamos a rua e ela era tão perigosa quanto é hoje. Havia os carros descontrolados, os motoristas bêbados, as motos a todo vapor, os paralelepípedos soltos como armadilhas propositais. Tudo era afiado ou pontiagudo, menos a dedicação de dona Izolina. Perto da janta ela nos gritava e, chateados, nos recolhíamos para a sala. Havia uma mesa e todos nos sentávamos, juntos, para celebrarmos mais um dia em que nada nos faltou.
Hoje vejo Ana cuidando de Helena e concluo que a natureza é sábia. O amor, a abnegação, o sacrifício, a felicidade, o sobressalto, estão ali, transmutados para uma nova geração. O que ela recebeu está sendo transferido para nossa filha. Os objetos parecem mais arredondados, não há armas em casa, mas os perigos são os mesmos: um aranhão em Helena dói tanto quanto um hematoma sofrido em nossa infância.
Ah, mãe, foi eu que atirei em meu irmão e logo após o grito dele, estridente, pesaroso, saí gritando igualmente pela casa, desolado, porque havia assassinado um parente tão próximo. Mas nada acontecera, nem uma esfoladela. Ele usava uma bermuda jeans e eu, com minha pontaria genial, havia acertado a nádega direita, de modo que o pequeno projétil se intimidara diante da força do tecido. Foi assim, mãe. Agora a senhora já pode contar para todos a história correta.
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