ALGUMAS LEMBRANÇAS MAIS >> Sergio Geia
A junção da panturrilha com a parte
posterior da coxa, o olhar fixo num ponto qualquer, o equilíbrio perfeito sem
qualquer espécie de apoio, o movimento suave de inspiração e expiração. O ásana
facilmente poderia me levar às lembranças dos bons tempos em que a yoga
representava uma dimensão importante da minha vida. Mas me distraí um pouco no
vento, no céu carrancudo, na chuva que se formava, e a imagem saudosa que me tomou
foi outra.
Estávamos no Bar da Ponte, tomando
cerveja, comendo peixe. O mesmo vento, o mesmo céu carrancudo, a mesma chuva.
Meu pai, meu tio, alguns amigos. Era um domingo de manhã. O Bar da Ponte fica
às margens do Paraíba, em Tremembé. O peixe era uma traíra espetacular.
Lembro-me que à tarde tinha jogo do Taubaté. Naquele tempo tudo era muito diferente.
Na verdade, eu tinha uma visão
diferente das coisas: a visão de uma criança. Talvez o mundo captado pelas
minhas lentes não fosse o mundo real. Era um mundo bonito, simples, que tinha
como coisa mais importante tirar a espinha do peixe, comer aquela carne branca
de sabor agradável, depois ir ver o jogo do Taubaté, num lugar mágico, que me provocava
uma sensação fantástica: era muito bom estar ali, e eu não queria que acabasse
nunca. Talvez o mundo emoldurado não fosse o mundo real. Nem tão belo. Nem tão
simples. Mas era o mundo que eu enxergava.
Meu pai, meu tio, os nossos amigos não
viam o mundo que eu via. Isso me faz pensar numa outra coisa: a beleza da vida não
está no objeto, na imagem que nossas lentes captam, mesmo porque a imagem era a
mesma. A pegada é a origem dessa imagem. Ela não está onde pensamos que está.
Ela está em mim, em você, nele, nela, em nós. Ela vem de uma câmera instalada dentro
de nós, de dentro pra fora, e não de fora pra dentro.
Lembro-me que estávamos num hotel aqui
em Taubaté, muito conhecido. Meu primo trabalhava nesse hotel e lá fomos
almoçar junto com o time do São Paulo, que naquela tarde jogaria com o Taubaté.
Perambulávamos pelo restaurante, pela sala de jogos, ao lado do Serginho
Chulapa, do Renato pé-murcho, do Getúlio, os caras jogando bilhar, batendo papo
e nós lá. Lembro-me que meu primo uma hora me chamou, e foi o Chulapa quem
respondeu: “Ah, ele é Serginho também? Prazer, xará!”, e me deu a mão. À tarde,
o São Paulo não aguentou o Taubaté, que com um gol de cabeça do Mirandinha
ganhou o jogo. Mágico, muito mágico. Tudo mais simples, mais bonito, e mais
leve.
Fiquei me alongando, levantando os
braços em direção ao céu, deixando que o vento enxugasse o meu suor, conectado
com tudo aquilo, uma miríade de boas e gostosas lembranças capitaneadas pelo
meu pai. Não teve jeito. Bateu uma saudade daquelas e uma vontade absurda de estar
com ele e bater um papo, tomar uma cerveja, comer uma traíra.
Ilustração:
Hip Hip Hurra!, Peder Severin Kroyer, 1851-1909
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