DIÁRIO DE UM CANAL >> Sergio Geia
Não, meu querido, eu não vou falar pra
você do canal que separa a ilha da Grã-Bretanha do norte da França, mais conhecido
pelos franceses como La Manche, ou, pelos alemães, como Der Ärmelkanal, ou English
Channel pelos ingleses, ou ainda Canal da Mancha, no bom e velho português.
Isso não vai ser uma aula de história, e eu não sou o Laurentino Gomes. O que
me traz aqui é algo mais interessante. Eu vou falar de uma coisa factível,
muito mais comum, e muito mais presente. Se fosse você, não tiraria os olhos daqui,
mesmo o assunto não sendo, digamos, palatável. Vai que isso acontece com você,
hein? Mas vou de diário, fique tranquilo. Como um bom uísque, a coisa desce
macio. Falemos sobre dor de dente.
Domingo, 04:23 a.m. Acordo com o
dente latejando. Parece que tem alguém, em intervalos regulares, enfiando uma
faca nele. Não consigo dormir. Vou até a cozinha e mando 40 gotas de Lisador
pra dentro. Fico pensando que merda é essa. 10:30
a.m. Sem dormir desde então, sou recebido com genuína alegria pelo dentista
de plantão do Plano, tirado de sua pescaria, missa, feira, cama, fórmula 1, qualquer
coisa que certamente é bem melhor do que um consultório em pleno domingão, por
um coitado com dor de dente. “Aparentemente, não é canal, não tem cárie. É uma
restauração grande e profunda. Vou fazer um curativo e receitar um remédio.
Acho que a dor passa. Se ela voltar, você deve procurar um especialista pra
abrir o canal”. 07:35 p.m. A dor
volta, mansamente.
Segunda, 06:30 a.m. Acordo com uma
dor mansa. 01:32 p.m. Controlada à
base de remédio. 07:21 p.m. Que
começa a querer sair do controle. 10:35 p.m.
Que não resiste a 40 gotas de Lisador. A dor não. Eu.
Terça, 05:20 a.m. Dor completamente
fora de controle. Vou trabalhar pensando no que fazer, e com a certeza de que é
canal. 08:53 a.m. Agendo para o dia
seguinte a consulta com a especialista do Plano. Até lá, remédio. 09:24 a.m. Um amigo me encontra com as
mãos nas bochechas, e me indica um tio seu, especialista, e dos bons. 02:35 p.m. Retornando do dentista, tio
do amigo meu, com o canal aberto, com o dente aberto, com a cara anestesiada, e
sem dor. 06:01 p.m. Já sem o efeito
da anestesia, não sinto dor. Santo tio do amigo meu. 10:35 p.m. Vou dormir como um anjo, sem dor e sem remédio.
Quarta, 06:31 a.m. Acordo feliz e
sem dor. Tomo café como um rei. 10:30 a.m.
A especialista do Plano me atende, mexe no dente, sem anestesia, drena, limpa,
enfia remédio e fecha. Marca retorno para o procedimento em 28 dias. 01:19 p.m. Sinto uma dorzinha, acho que
em razão de ela ter mexido, claro. 07:26
p.m. A dor aumenta, mais ainda sob controle. 11:57 p.m. Vou dormir com um pouco de dor, muito menor do que a do
curíntia, he,he,he!
Quinta, 8:23 a.m. Dor
insuportável. A dentista do Plano foi viajar, só volta na quarta. Pede pra eu
ir à emergência e mandar abrir o dente. Pesquiso no google: é uma briga entre eles.
Fechar ou não fechar? Os manuais mandam fechar, mas quem tem experiência na
emergência sabe que fechando, o paciente volta dia seguinte com dor. Quer um
conselho? Não deixe fechar, amigo, enquanto não tratar o canal. 10:30 a.m. A dentista, esposa de um
grande amigo meu, me traz de novo pra vida. Deixa o dente aberto, com um
algodãozinho. Sem dor. 03:47 p.m.
Sacudo com essa lenga-lenga, ligo pro tio do meu amigo e agendo o procedimento
para o dia seguinte, sem cobertura do Plano.
Sexta, 03:00 p.m. Tudo resolvido.
Tratamento do canal em 53 minutos. Já não fazem mais canal como antigamente.
Ainda bem.
Ilustração: Honthorst
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