QUARTO DE BONECA >> Sergio Geia
Justin abraça um violão preto. Mas o
que me chama a atenção mesmo é uma menininha de roxo, bumbum arrebitado,
sentada num carrinho de bebê — a imagem é meio turva, eu não enxergo direito.
Não. Não dá. Fere a lógica. Naquela posição, não. Sem contar o carrinho. Já
teria descido. Espatifado rua abaixo. A artista desprezou as leis da física.
Mas tudo bem.
Antes o problema fosse esse. Tudo
bobagem. Bobagens. Como bobagem é a imensidão rosa que me cerca. Um quarto de
boneca. Um quarto de boneca que me abriga temporariamente. Mas o que importa
são as páginas, as páginas visitadas. Ou revisitadas. Não. Isso não importa.
Quer dizer, isso é o que importa, mas o que eu estava pensando no momento não é
no que importa, mas no problema que reduz acentuadamente o problema do quarto
de boneca. Essas batidas. Essas batidas irregulares, fora de hora, que martelam
os miolos.
São dez e vinte e seis. Da noite. Uma
noite mais fria que as últimas, véspera de um feriado qualquer. Debaixo do
cobertor, eu tento voltar às páginas, ao que realmente importa. O artista fala
do mar. E de um homem. Um homem e o mar. Que combinação! De sua varanda, ele
observa. O homem está a nadar. A primeira vez que deixei meus olhos deitarem na
imagem foi em Ubatuba. E me apaixonei. Naquela costa, mar lindo é o que não
falta. Bom lugar para se apaixonar. Agora, de novo. Mas não há mais o mar, nem
o homem; cá está outro homem, não com suas braçadas pausadas e fortes, mas com
suas marteladas, não tão pausadas, mas fortes de arrancar os miolos. A
sensibilidade que se multiplica em um, tão ausente noutro.
Eu desvio o olhar por um instante.
Volto para Justin. Para o violão. Para a menina de roxo que, apesar do perigo,
mostra os dentes numa alegria tipicamente juvenil. Penso em desligar as
páginas. Em ligar a música. Em me desligar. E desligar a visão do quarto rosa,
do quadro da menina, da fotografia do Justin, das bonequinhas perfiladas que
agora, só agora, percebo sobre a mesa. Mas ligaram a furadeira. Ou será uma
cortadora de cerâmica?
O vento é nordeste e pequenas espumas nascem e
somem. O homem lá. Nadando. Sem imaginar que alguém, de sua varanda, o observa
serenamente, encantado com os movimentos. Sem imaginar que alguém de longe, de
muito longe, o imagina flutuando em águas macias, solitário, na bela tarde de
sol emoldurando uma praia deserta. Não. Aí eu não sei. O escritor não falou.
Falou que o sol resplandecia. Que não havia ninguém na praia. Que o vento era
nordeste. Que as espumas nasciam e sumiam. Mas não falou se era uma manhã ou
uma tarde de sol.
Não importa. O que importa é que a
imagem que eu formo nesta noite fria de marteladas e afins é a imagem de uma
tarde de sol. E basta. Não. Não basta. Na verdade, imagino o fim de uma tarde
de sol, o vento crispando as ondas, o homem lá, a nadar, a cumprir a sua
missão, o seu destino, destino de personagem e autor de sua própria história,
personagem real das histórias do mundo. E da minha história.
São dez e quarenta e um. Ao som que
gostaria fosse o do mar, das ondas que vem e vão, do nordeste a sacudir folhagens,
mas não é, eu desligo. Desligo as páginas. O Justin. A menina. A visão do
quarto de boneca. Ou tento.
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