RUSIVEL E AS PASSEATAS - Final >> Albir José Inácio da Silva
Agora, ao ouvir os televisivos convites
para a manifestação - não os pichados em muros durante a madrugada ou em
panfletos mimeografados – Rusivel sente brotar o patriotismo, começa a entender
a democracia e cantarola o hino nacional.
Rusivel não gostava de política e
ainda não gosta. Afinal, a vida o esfregou na política de maneira muito
dolorosa. Tentava entender esse ou aquele episódio, mas sem sucesso. Nunca compreendeu
esse negócio de esquerda e direita. Um amigo, metido a leituras, falou coisas
sobre revolução francesa, jacobinos e girondinos sentados à esquerda e à
direita no parlamento, mas isso confundiu ainda mais sua cabeça.
Menos ainda entendia a questão
das cores: camisa vermelha, camisa da seleção, partidos azuis, partidos
vermelhos, para ele eram apenas cores. É por isso que nenhuma ideologia
inspirou a escolha da roupa para a manifestação. O manto sagrado, como ele diz,
esteve presente nas grandes emoções de sua vida. A de hoje é a camisa número 3
da coleção flamengo 2015 – toda vermelha com escudo branco em cima do coração.
Um arrepio lhe percorre o corpo
ao ver aquele mar de gente gritando palavras de ordem. Não parece perigoso. Não
são cabeludos e desgrenhadas com cara de assustados. São famílias inteiras,
sorridentes, levando os filhos às costas. É a polícia fazendo cordão para
proteger, sendo aplaudida pelos manifestantes e tirando fotos com eles. Nada
pode dar errado.
E lá vai ele com o peito estufado
de orgulho flamenguista para sua primeira passeata como protagonista, e não
como vítima. Nem notou os olhares atravessados e os gestos hostis. Estava de bem
com a vida, e achou que aquelas roupas eram um desagravo ainda pelos sete a um
da Copa.
O que não dava era pra resistir a
uma camisa da seleção por aquele preço – e logo a número dez de Pelé, Zico e
Neymar! No momento em que recebia a gloriosa, um manifestante mais exaltado rosnou-lhe
gratuitamente:
- Mas que merda é você?
Rusivel pensou que era algum
vascaíno ou argentino despeitado. Estava feliz e nenhum raivoso ia estragar o
seu dia. Vestiu a camisa por cima da vermelha e ganhou de brinde uma bandeirinha
do Brasil.
Longe de ser um provocador, mas
perto de alguns provocadores, Rusivel, com camisa vermelha aparecendo por baixo
da canarinho, não precisou abrir a boca para atrair impropérios.
- Esse cara é infiltrado! É
traidor! É bolivariano! – acusaram alguns.
- Isso não me engana. É coxinha,
golpista disfarçado! – responderam outros.
Os xingamentos viraram empurrões
e bandeiradas, socos e pontapés. A gloriosa camisa dez foi rasgada porque
aquele comuna não merecia vesti-la. A polícia militar, que tinha lá suas
preferências, não reconheceu naquele maltrapilho ninguém que merecesse ser
protegido. E o cassetete cantou solenemente nas suas costas.
Mancando, com um galo na cabeça e
as costas ardendo, Rusivel escapou de sua segunda passeata em 40 anos. E se foi,
lembrando da infância e das sábias palavras de sua vovozinha:
- Quem procura o que não guarda,
quando acha não conhece!
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