RUSIVEL E AS PASSEATAS >> Albir José Inácio da Silva
Bombardeado pelas recentes conclamações
às passeatas, Rusivel sentiu nostalgia do que não viveu. Ou melhor, viveu, mas
não como queria. Não como protagonista.
Nada boas as lembranças dessas
manifestações. Tudo o que sabia de política naquele início dos setenta, quando
cruzava o centro do Rio como office-boy, vinha do sussurro das ruas ou dos
fardados comunicados oficiais.
A princípio olhava com
curiosidade os cabeludos e as mocinhas, tão jovens ainda para ser bandidos, que
desafiavam cargas de cavalaria, blindados e baionetas, em meio às nuvens de
gás. Por que não estavam na praia ou no cinema naquela tarde linda?
Eram terroristas. Sabia deles pelas
manchetes, pronunciamentos na televisão, e já tinha visto os cartazes de
“procura-se” na Central do Brasil.
Parece que foi ontem, as bombas
explodindo na Rio Branco. Barbudos e descabeladas passam correndo com lenços,
blusas e até saias cobrindo o nariz. Cavalaria vai pelo asfalto e soldados pela
calçada. Sai fumaça do bueiro e Rusivel sente a garganta fechar, segura o
pescoço e encosta na porta de uma loja, a essa altura abaixada.
- Corre garoto, vai embora daí! –
grita a vendedora pela grade. Mas ele não consegue se mexer, nem respirar.
Dois soldados se aproximam, um
traz o fuzil com baioneta e o outro um cassetete. O do cassetete pega Rusivel
pela camisa e levanta a mão armada. Reunindo forças e oxigênio, nosso herói
tenta falar:
- Eu sou... eu sou... – como a
voz se recusa, ele puxa a carteira profissional no bolso de trás.
- Pra mim você é um merda! –
responde o soldado. – E olha o que eu faço com isto! – rasga a carteira em duas
e joga no chão.
Rusivel tem uma crise, tosse,
engasga, fica vermelho e sacode o corpo em convulsões. Isso parece acalmar o
soldado que o segura. O outro grita:
- Larga esse lixo, que ele ainda
morre na tua mão com as pessoas olhando!
O soldado larga, mas dá duas botinadas
e três golpes de cassetete. Rusivel se arrasta de quatro pela Treze de Maio e
foge aproveitando os tapumes da obra do metrô.
Não preciso dizer que ficou
traumatizado. Tiros, bombas e soldados o assustavam até em filmes da televisão.
Manteve-se distante desses movimentos por décadas. Não tomou conhecimento de
“diretas já”, “fora Collor”, “black blocks” e coisas que tais.
Mas isso são águas passadas. Rusivel
se recuperou dos pesadelos políticos e o Brasil também. O Brasil já pode
suportar manifestações contra e a favor porque a democracia está amadurecida
pelo mais longo período de normalidade institucional da sua história.
Agora, ao ouvir os televisivos convites
para a manifestação - não os pichados em muros durante a madrugada ou em
panfletos mimeografados - Rusivel sente brotar o patriotismo, começa a entender a democracia e cantarola o hino nacional.
(Continua em 15 dias)
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