WILLIAM, O ORDINÁRIO - PARTE I >> Zoraya Cesar
A rotina se entranhara nele tal qual raízes de figueira-vermelha, estrangulando-o pouco a pouco. Sentia-se inquieto e desassossegado. Tinha a impressão de que havia um corpo estranho dentro do seu, querendo tomar-lhe a vida.
E que vida? Aquela mesma de sempre, tão rotineira e repetitiva que, se ele perdesse a memória de um dia, não faria diferença, porque o dia seguinte seria exatamente igual. Ele poderia resumir a história de sua vida em duas páginas, ambas ordinárias.
Mesma rotina. Mesmo emprego. Mesmo ônibus. Mesma volta para casa.
Mesma vontade louca de ter uma vida diferente.
MESMA ROTINA – Desde os tempos de colégio comia pão com manteiga e café sem leite, almoçava feijão com arroz, carne e cenoura, goiabada com queijo de sobremesa. À tarde, um café. À noite, macarrão. Aos finais de semana, fast food. Às vezes se encontrava com os amigos para tomar uma cerveja. Mas os amigos foram casando, tendo filhos e, naturalmente, fizeram novas amizades. William, tímido e solteiro, não coube mais naquelas vidas.
Aos 30 anos, não tinha o que se poderia chamar de amigos, mas conhecidos, com os quais encontrava de vez em quando, cada vez mais raramente. Desgostava-o a companhia de gente tão comum. Preferia beber sozinho, e ficar a observar as pessoas, imaginar que tipo de vida teriam, se a teriam mais interessante que a sua, se seriam pessoas especiais, se teriam algum segredo.
William queria muito ter um segredo, algo que fizesse dele uma pessoa especial.
MESMO ÔNIBUS – Às 6 horas da manhã o ônibus já estava cheio e uma das maiores agonias de William era ter de viajar espremido, sentir corpos estranhos encostando no seu, aquele cheiro de banho recém tomado com sabonete barato, do creme para os cabelos que as mulheres usavam... Ele odiava cada minuto daquele trajeto de ida para o trabalho.
A volta não era melhor. Cansadas, as pessoas se encostavam umas às outras, dormitavam, algumas babavam ou roncavam. Ele não descansava, alerta, sempre cuidando de não encostar nos outros, os outros encostando nele assim mesmo.
Morava longe, bem longe do centro da cidade, onde trabalhava. À medida em que o ônibus seguia, diminuía o número de passageiros e ficavam os pontos de parada mais escuros, ermos, perigosos.
No fundo de sua mente estrangulada, uma tímida ideia começava a tomar forma; ele, ainda inconsciente dela; mas a ideia, no entanto, totalmente cônscia do terreno fértil que em que nascera.
William desejava mais que tudo vivenciar.algo que fosse só dele. Era isso ou enlouquecer.
MESMO EMPREGO – Bancário. William era bancário, porque esse era o trabalho de seu falecido pai e o sonho da sua mãe, que queria o filho numa profissão garantida e respeitável.
Formado em contabilidade, tinha cabeça para cálculos, era organizado, meticuloso, nunca faltara. Se perguntassem a qualquer de seus colegas o que achavam dele, todos diriam que era um cara legal, gentil, que não se metia na vida de ninguém e fazia seu trabalho bem feito.
E o que ele achava disso tudo? William gostava muito de seu emprego, mas ser bancário era o cúmulo da mediocridade. Sentia-se um otário. Sim, era isso. Para William, todo bancário era um otário.
E ele queria tanto ser um cara cool, ter uma vida além do ordinário.
MESMA VOLTA PARA CASA – William morava numa casa antiga e tinha um quarto só para ele, nos fundos, cuja porta dava para a cozinha, e, esta, para a rua. No armário, camisas pólo, todas cinza, azul-marinho ou pretas, e calças de brim escuro; sapatos de cadarço e meias brancas. Usava o mesmo estilo de roupa desde a adolescência. Ao lado da cama, encimada por um espelho, uma mesa, sobre a qual ficava seu notebook. A internet e os games eram parte integrante da vida de William. Seus melhores amigos, seus companheiros.
Morava com a mãe, uma velha cegueta, esquecida pelo destino, que passava o dia vestida com um peignoar desbotado e puído, resmungando sua artrite pela casa. Criara o filho para ser um bom menino, obediente e comum. Incutira-lhe o temor de tudo o que fosse fora do normal, do mundo lá fora, cheio de perigos, de gente má e violenta.
William tinha medo, sim, mas de morrer sufocado pelas raízes da figueira-vermelha que se espraivam em sua alma.
Era um caso de vida ou morte. Diante da pressão, aquela tímida ideia, antes escondida em sua mente, qual violeta no meio do mato, desavergonhou-se e apareceu, nua e esperançosa.
William a recebeu e acalentou. Afofou e adubou a terra onde nascera a violeta-ideia, examinando cada possibilidade. Tudo era uma questão de coragem e planejamento.
A ESTRATÉGIA – William era observador. Era paciente. E agora tinha um objetivo real a dar-lhe sentido à vida. Começou os preparativos.
Primeira coisa a fazer era escolher onde encontrar a pessoa certa. Escolheu o ônibus. Sempre havia mulheres cansadas e magras que desciam sozinhas nos pontos finais.
O segundo passo foi matricular-se numa academia, para reforçar os músculos, melhorar a aparência, ganhar resistência aeróbica. Iria precisar, com certeza, de alguma força física, e talvez fosse necessário correr também.
E, por fim, pesquisar na internet todas as informações e material dos quais necessitaria para levar adiante seu plano.
Estudava, comprava, lia, preparava-se. Estava por escrever um novo capítulo em sua vida.
William, finalmente, tinha um segredo.
Continua dia 10 de abril
Comentários
Zoraya, adorei. Não pude deixa de lembrar de Caio Fernando Abreu.
Breno