DEZ MINUTOS >> Carla Dias >>
Promessas vazias e esperanças vãs lhe tiram do sério, assim como se atrasar para o trabalho, que acaba sempre sendo ruim para ele mesmo. Quando se é responsável por diversas funções, torna-se fácil perder o foco, até porque o foco dele não é um, mas vários.
Mesmo com quinhentas e vinte e sete mensagens para responder, o celular apitando seus compromissos na empresa e a assistente repetindo que ele é funcionário como todos ali, às quatro da tarde ele para o trabalho e tranca a porta, fecha as venezianas que dão para o salão - onde trinta funcionários falam sem parar ao telefone -, fecha a janela e apaga a luz. Dez minutos, devidamente descontados da mísera meia hora que tem de almoço, é do que ele precisa.
Em dez minutos, sentado confortavelmente em sua desconfortável cadeira, olhos fechados, de barulho somente um falatório distante, ele reflete a mesma reflexão que lhe acompanha há mais de trinta anos de casa: e se ele não existisse, se não estivesse ali, o que mudaria? As respostas variam, de acordo com o tempo e da personalidade de quem lhe cerca, porque, diferente dele, as pessoas vêm e vão. Sim, sua assistente tem razão. Ele é somente mais um funcionário com meta para atingir, apesar de seu talento de se adaptar a qualquer situação, seja ela oriunda do humor do mercado ou da péssima condução dos negócios pelos donos da empresa.
Nesses dez minutos, pensa também em outra coisa. É pensamento que ele acessa, sempre que deseja sossegar o espírito. Porque, diferente do que enxergam na empresa, da imposição de seu olhar profissional, de seus ternos simples, mas muito bem conservados e passados, da austeridade de sua voz e do recorrente infortúnio de ser o autor de quase todas as broncas infligidas durante horário comercial, há essa fresta na rotina pela qual a luz entra e se espalha.
Há esses dez minutos, durante os quais ele pensa em como seria se estivesse em algum lugar com montanhas e rios, em vez de em um escritório, mas é certo que sua criatividade não ultrapassa as montanhas, tampouco molham os pés nos rios. Na verdade, nem se lembra de quando esteve em lugar onde não pudesse chegar de metrô. Mas a maior parte desses dez minutos ele gasta pensando em outra coisa, muito menos provável, porém cordialmente amansadora de angústias.
Quando pequeno, moleque de tudo, conheceu um menino na escola que lhe disse, em confidência, que quando crescesse sumiria do mapa. Ele não entendeu esse negócio, que não há como sumir da geografia do mundo. Mas o colega, menino danado, que não parava quieto e sorria o tempo todo, assegurou que havia sim um lugar fora do mapa, e que lá ele construiria a sua vida.
O colega se tornou seu melhor amigo. Não sumiu do mapa, ao contrário, é uma das pessoas mais conhecidas do mundo. Dono de hotéis em diversos países, fluente em pares de idiomas, homem de negócios que serve de modelo para tantos. Ainda sorri daquele jeito escancarado, só que não é mais sorriso desbravador, mas oferecido para omitir que, depois de tantas vitórias, vem perdendo a batalha para a solidão. Queria ele estar no mapa afetivo de alguém que não se importasse com o tipo de importância que ele tem para quem não lhe quer bem, mas definitivamente quer se tornar ele.
Seu amigo lhe ofereceu dinheiro, emprego, status. De forma atenciosa, preocupado com a vida de sempre dele, ofereceu-lhe viagens, que o mundo é grande, por que não conhecê-lo? Ele nunca aceitou mais do que ser convidado para um e outro jantar pomposo na casa do amigo. Fora isso, os churrascos e bate-papos eram sempre na varanda de seu apartamento comprado em parcelas a perder de vista.
A fama, o dinheiro, o sucesso do amigo nunca lhe interessaram. O que ainda os mantêm sintonizados é a amizade que eles construíram antes de se tornarem adultos envolvidos com suas questões profissionais e existenciais. Amizade conquistada nas tardes jogando bola, nas paqueras durante a aula de Ciências, que ambos caíram de amores pela professora. E nessa ideia que se tornou a única capaz de lhe assanhar o imaginário, que ele nasceu pessoa prática, infértil para os dramas compartilhados.
Durante os dez minutos em que ele consegue se desprender da realidade, da sua rudeza e austeridade, da impaciência do outro em compreender que a vida nem sempre nos dá o que exigimos dela, e quase sempre exigimos o que nem mesmo merecemos receber, e mergulha nesse silêncio que é o negar-se a escutar o mundo, ele se sente como se estivesse vivendo fora do mapa; que se alguém conferisse nesse período, ele não estaria em geografia que fosse.
Durante os dez minutos, ele desiste da sua realidade e vai morar nesse lugar interior, completamente fora do mapa, do jeito que o amigo, incessantemente, até que a vida lhe empalidecesse os desejos, acreditou ser possível.
O alarme do celular toca. Ele sai do transe, automaticamente. Abre os olhos, a janela, as venezianas e observa o movimento do salão. Os funcionários ainda falam ao telefone. Alguns deles são particularmente histriônicos.
Durante dez minutos, ele some do mapa, independente das urgências, da insatisfação de sua assistente, dos vários papéis que ele tem de desempenhar como funcionário de um mesmo lugar há mais de três décadas. Ele sabe que, para seguir com a vida, é preciso haver um momento em que possamos existir independente do que ou de quem nos cerca.
Essa liberdade cronometrada acontece todos os dias para ele, mesmo nos finais de semana, às quatro horas da tarde.
Imagem © Rodrigo de Castro Scott
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