IGNORÂNCIA É FELICIDADE >> Albir José Inácio da Silva
- Quem escreveu isto? - perguntou
a diretora, mais séria que de costume, olhando para os quatro suspeitos.
Os quatro eram os alunos de
melhores notas, que tinham direito a sentar nas carteiras duplas em frente à
professora. Naquele mês, Silvinha, primeira colocada, sentava-se à esquerda.
Celinha, segunda melhor nota, ao seu lado. Na carteira de trás estávamos eu e
Hilda, como terceiro e quarto lugares respectivamente.
Eu estava entre os quatro por
razões político-econômico-administrativo-pedagógico-aleatórias. E era, por
isso, um garoto de muita sorte. Cheguei mesmo a ouvir de Dona Creusa - um misto
de servente, inspetora e fofoqueira:
- Esse menino dá muita sorte nas
provas. Está sempre nas primeiras carteiras!
É que as escolas públicas não
comportavam todos os alunos e o governo dava bolsas de estudo em escolas
particulares. Eram os bolsistas. E foi assim que eu fui parar numa escola, não
digo de classe média, era um bairro pobre, mas que tinha alunos de classe média.
Isso para desconforto de alguns pais incomodados com aquela mistura que podia
ser democrática, mas era pouco eugênica.
Mas voltemos à crise que naquele
dia impedia o início da aula. Os zelosos pais de Hilda, verificando as tarefas
do caderno da filha no dia anterior, encontraram o seguinte enigma:
"Brin + (desenho
rústico de uma cadeira que mais parecia um quatro de cabeça pra baixo) + com +
(desenho rústico de uma mulher só identificável pelos cabelos compridos) + só
na + (desenho rústico de uma cama que mais parecia uma mesa)”.
A mãe mostrou pro pai e, na manhã
seguinte, foram cobrar explicações da escola.
E é por isso que a aula não
começava. Confesso que não consegui decifrar a frase na hora, talvez assustado
com a grande unha da diretora, apontando o caderno de Hilda. Ela também não
esperou resposta, parecia cumprir um ritual de investigação. Recolheu nossos
cadernos, mas não voltou para sua sala, onde estavam os pais de Hilda. Entrou
com a professora na biblioteca provavelmente pra fazer a perícia.
Nenhum de nós tinha dúvidas sobre
a autoria do crime. Éramos capazes de reconhecer a letra uns dos outros até no
escuro. E duvido que a professora também tivesse qualquer dificuldade em
identificar. Era uma letrinha cuidadinha, redondinha, caprichosinha. Como a
dona.
Mas Silvinha era branquinha
demais, lisinha demais, fofinha demais para escrever saliências. Precisava
continuar imaculada, principalmente porque pagava mensalidade. Eu era pardo, crespo e magrelo, também demais, e provavelmente
fazia essas coisas. Na classificação de Dona Creusa, eu era encardido.
A professora começou a aula sem explicações.
A diretora ficou ainda um tempo conversando com os pais de Hilda. Depois saíram
os três e se despediram na nossa porta. A diretora estava sorridente, mas os pais
me fuzilaram com o olhar. Indagada, a professora desconversou:
- Não foi nada, faz o teu
trabalho.
Confesso que me senti mal com
aquele olhar, mas não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. E
continuei não sabendo quando os olhares se repetiram à porta da escola por todo
o resto do ano.
E ainda bem. Só muitos anos
depois atinei com o arranjo de que fora vítima. Minha ingenuidade foi
providencial. Como diz Calvino: “Ignorância é felicidade”. Aquele menino
encardido não estava pronto para conhecer a injustiça, principalmente advinda
da escola e da professora que tanto admirava. Não devia ainda duvidar da
lealdade humana e da onisciência divina. Era cedo para essas dores.
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