A BONECA >> Albir José Inácio da Silva
Acordou muito cedo, noite ainda, e teve de esperar a
hora de levantar. Sozinha desembaraçou quanto pôde o cabelo, mais na frente que
atrás, e lavou o rosto. Ninguém precisou mandar. Calçou o chinelinho maior que
seu pé e sentou no banco da mesa do café. Hoje não queria que ninguém gritasse
com ela.
A educadora percebeu o capricho e só não fez elogio
porque Abrigo não é lugar de elogios. Entendia a euforia das outras crianças.
Era Natal. Daqui a pouco as visitas chegariam trazendo roupas e presentes. Mas Tica não recebia visitas. Não ganhava
presentes. A cozinheira, acostumada já com aqueles cinco anos e quatro palmos
de pirraça, até comentou: “Hoje vai ter manha grossa depois da visita”.
Tica estava alheia a essas preocupações. Saltitava
feito passarinho pelo quintal. Quando as visitas começaram a chegar, ficou de
pé, encostada na parede em frente ao portão, levantando e abaixando os
calcanhares. Ainda estava assim quando a tia e a prima de Belinha chegaram,
trazendo uma caixa grande. Belinha recebeu o beijo da tia já rasgando o papel
de presente. Tica ficou a alguns passos do grupo, vigiando.
As visitas se despediram e Tica também acenou com a
mão, sem tirar os olhos de Belinha, a quem depois seguiu até o quarto, mantendo
sempre a distância de três ou quatro passos.
Belinha sentou-se na cama, abriu a caixa e ficou
admirando a boneca nova. Só então percebeu a presença de Tica como uma estátua
à sua frente. Abaixou-se , sem tirar os olhos da caixa, e levantou pelos
cabelos uma boneca que estava embaixo da cama.
Com as pernas tremendo, Tica avançou dois passos e apertou
com os dois braços a boneca pendurada. Ouviu o próprio coração batucando contra
o brinquedo. A urgência espantou a vertigem e ela saiu da frente de Belinha, que
podia se arrepender.
Foi para sua cama e deitou a boneca encardida no pano
desbotado. Puxou pra frente o cabelo do lado que estava meio descolado. Ia
colar. Ia pintar com caneta uma sobrancelha que faltava. Cobriu com um trapo
até o pescoço, mas estava muito calor e a boneca ainda tinha a blusa do
vestido. Cobriu só até a cintura. Deu um beijo que pegou mais ou menos olho,
testa e nariz. Levantou a cabeça pelo quarto com um olhar quase desafiador e suspirou.
Sua filha. Ia cuidar dela.
Ia cuidar muito bem dela.
Comentários
Sempre gostei de ler textos assim, sou facinada com livros de fantasia e conto de fadas. Mas me facino mesmo e com historia de crianças. Parabens pela crônica.