TODAS AS CASAS, AFINAL, SÃO IGUAIS >> André Ferrer
─ Encontrou os documentos?
─ Há duas outras pastas no aparador da sala, mas creio que esteja tudo aqui. Preciso conferir antes de irmos.
Então, o homem que trazia a pasta se deteve. Ele gingou, indeciso, porque a idosa fez o mesmo diante dele. Ambos no apertado espaço entre os armários e a mesa da cozinha.
─ Mãe! ─ disse ele.
─ Sente-se, filho, vou passar um café.
─ E a sua dor de cabeça Junior? ─ o pai perguntou. Estava sentado à mesa. Os braços cruzados. Olhava com severidade para Junior. ─ Você reclamou de enxaqueca lá no cemitério.
─ Ainda dói. Realmente, preciso de um café preto.
─ Filho! Este casebre nem chega aos pés do palacete ─ fez o pai, que examinava todos os detalhes do lugar desde que ali chegara. ─ Eu nunca entendi porque o Comendador se mudou para cá.
─ Pai, ele costumava dizer que o palacete ampliava a solidão. Logo que enviuvou, dispensou os empregados e alugou a propriedade.
─ Conversa fiada.
Sentado à mesa, Junior abriu a pasta. Quando voltou a erguer os olhos, notou que o velho observava a mulher. Uma chaleira já estava no fogão. Coador, bule e filtro de papel a postos. A mulher encontrara o necessário, as xícaras, o açúcar, o pó de café.
─ O que foi? ─ disse Junior.
─ Uma mulher pode nunca ter estado numa cozinha, mas ela sempre encontrará o que procura. Sua mãe, entretanto, bateu o recorde!
─ Velho bobo ─ disse a mulher. ─ Você não vê que o nosso filho está trabalhando?
─ E os filhos do Comendador?!
─ Velho sonso. Bruno, o mais novo, está no Canadá ─ disse a mulher.
─ É rico. Não custaria nada pegar um avião. Nos dias de hoje, por causa da tecnologia, um defunto pode esperar dias, semanas e até meses pelo sepultamento. E os outros filhos? Cadê?
─ A moça já é falecida.
─ Eu sei. Eu sei – retrucou o velho. ─ Dirigir de Petrópolis até o Rio, num domingo de Carnaval, depois de uma noitada daquelas! Deu no que deu.
─ Olha o respeito. Eu já trabalhava para o Comendador quando a Marcinha nasceu. Pelo amor de Deus, vi a menina crescer ─ disse, chorosa, a mulher. ─ Hoje, viemos enterrar o pai dela. Tenha dó! Nosso filho é advogado e está fazendo uma gentileza. Fique na sua, velho.
─ Falta uma escritura ─ disse Júnior. ─ Segundo a lista de bens que o Bruno me enviou, falta um papel aqui.
─ Filho, confira direito ─ disse a mulher, que vertia a água fervente no coador. As costas voltadas para a mesa. ─ Lá no Rio, você precisará de todos esses papéis. Confira tudo para não ter voltar aqui. Mas... Antes, beba este café.
O velho rejeitou o café.
─ Meus queridos, quando estive na sala, eu vi que lá fora tem um balcão e uma cadeira aconchegante. Vou fumar o meu cigarro. Depois, eu tomo café. A paisagem deve ser agradável. Afinal, estamos na serra.
Em silêncio, Junior tomou o seu café. A mãe sentou diante dele.
─ Velho implicante – disse ela.
─ O pai não gosta de sair de casa. É isso.
─ Só isso? Pode apostar que não.
─ Agora mesmo, no cemitério, nós conversamos. Eu disse para ele ir a São Paulo me visitar de vez em quando, mãe. A senhora sempre vai sozinha. Ele precisa aproveitar a vida. Ir com a senhora àquelas excursões a Jericoacoara, Manaus, Foz do Iguaçu, enfim... A senhora viaja tanto!
─ Viajo mesmo. Eu sempre viajei.
─ A vida é curta ─ fez Junior em pé. ─ Vou até a sala. Preciso encontrar aquela escritura. Amanhã, bem cedo, eu resolvo os negócios do Comendador e do Bruno e volto para São Paulo.
─ Filho, amanhã é quinta. Por que você não passa o final de semana no Rio conosco?
─ Tenho uma reunião importante na sexta, mãe. É por isso.
Quando entrou na sala, Junior viu o pai, lá fora, no balcão, esparramado numa chess long. Parecia bastante entretido com o seu cigarro e com a paisagem.
─ Vamos lá! ─ disse Junior diante do aparador. Havia muitos objetos naquele canto da sala. Uma das pastas tinha uma etiqueta: “Recibos de Petrópolis”. Baseado nisso, o homem escolheu a outra pasta. O primeiro documento era exatamente a escritura que faltava.
Uma sensação de tempo ganho tomou conta de Junior e, por alguns instantes, até a dor de cabeça pulsante pareceu diminuída. Seus olhos, de repente, saltaram do timbre do cartório, impresso no papel amarelado, para uma foto do Comendador quando jovem.
Na parede e sobre o aparador, vários momentos fotografados. Além da imagem do playboy, que usava costeletas à moda dos 1970, havia outras. Era notável que ali existia um critério cronológico da esquerda para a direita e da parede para a superfície do aparador. Uma das fotos mostrava o Comendador já barbado e mais velho. Uma imagem tirada em Alhambra na cidade espanhola de Granada. O homem sorria para quem o retratava. A falecida? Um dos filhos quem sabe. Outra mostrava o Comendador no Rio de Janeiro, as mãos na defensiva, protegendo-se da pessoa que portava a máquina fotográfica. Ele ria prazerosamente. Ainda na parede, a próxima foto tinha uma assinatura e anotações. Então, Junior reconheceu a sua mãe ao lado do Comendador e logo soube quem era o outro homem barbado: “São Paulo, 1985, Restaurante Fasano, na companhia do nosso amigo Luiz Carlos Miele.” Junior tomou distância. Intrigado. As fotos no aparador eram todas bem parecidas, ─ muito parecidas ─ pelo menos, em um aspecto: nem a esposa nem Bruno nem a filha, Marcinha, figuravam na ordenada galeria.
─ Curioso.
─ Filho, o que foi? Curioso? O que é curioso?
─ Mãe! ─ fez o homem. ─ A senhora me assustou.
─ O que é curioso?
─ Nada. Não foi nada.
O pai pigarreou e bateu a porta que dava acesso ao balcão.
─ Vou tomar o meu café. Precisamos ir! Encontre logo o papel.
Quando o velho entrou na cozinha, Junior esfregou as têmporas.
─ Eu devia escutar os seus conselhos, mãe, e sempre levar comigo alguns comprimidos.
─ Eu pego um analgésico para você, filho ─ disse a mulher com grande convicção. Voltou-se para o aparador e abriu uma das gavetas. Muito desenvolta naquele ambiente ─ como se todas as casas fossem, de fato, iguais ─ ela pegou a cartela de comprimidos e ofereceu ao filho.
─ Aqui está.
Comentários