DESCORTINAR-SE >> Carla Dias
Ajeita a gravata, confere se está tudo certo com seu terno emprestado. Nunca foi de prezar por tal alinhamento, esse requinte de cuidado redobrado com o espelho. No entanto, preferiu não arriscar. Não quer parecer bagunçado, indiferente.
Quando recebeu o convite, não acreditou no que estava escrito naquele papel que parecia veludo. Passou os dedos sobre as palavras, que saltavam lindamente aos seus olhos que já tem que se esforçar um tanto mais para alcançar a imagem. Mostrou o convite aos companheiros de café das 16h30, lá na padaria da esquina da Rua da Saudade. Todos se emocionaram, riram aos engasgos, deliciaram-se com a boa sorte do amigo.
Ele não é dado aos devaneios, tampouco aos flertes com a sorte. Passou a vida reconhecendo a lógica como a guia mais acertada para a jornada do tornar-se. No entanto, aprendeu − e passou um longo tempo no caminho deste aprendizado − que há o que a vida prepara para que as pessoas se lembrem de que não são deuses.
Não acredita em deuses, mas acredita que pessoas não são deuses.
Houve um tempo em que ele dava trela aos sonhos e até se divertia com isso. Não era de levar sonho a sério e acabava se engalfinhando com a certeza de que eles tomavam o espaço da realidade. E era nela que se encontrava a sobrevivência.
Sobreviver foi um desalinho na sua história. Sobreviveu a muitos enganos e nunca foi rápido para compreender quando abria a porta errada, que havia nada ali capaz de ajudá-lo a continuar a construção de uma realidade tranquila. A teimosia é prato cheio para a lerdeza no reconhecimento dos erros, na compreensão dos acertos, na aceitação das vulnerabilidades.
Não acredita em pessoas completamente benevolentes. Acredita em pessoas sendo pessoas, cometendo seus erros e arbitrariedades, o que não as impede de amparar outros. Enxerga certa beleza nisso.
Sabe que não veio da melhor tiragem de pessoas do universo. São tantas falhas, aquilo que identificou ou que deliberadamente ignorou, as mágoas que promoveu e os afetos que renegou. Acha que aquele que diz que ser pessoa é fácil, decidiu por ser um esboço de pessoa. E ser esboço nunca foi seu desejo.
Ele sente o corpo estremecer, e, por um momento, reluta em sair do lugar. Porém, ele sabe que não há mais tempo para construir oportunidades como esta. E se passou a vida a não dar o devido crédito a essa importância, talvez esteja na hora de não desperdiçar oportunidades.
Escuta o falatório vindo lá de fora e sente o coração – máquina que agora funciona aos desmaios das suas engrenagens – acelerar. Por alguns segundos, sente que melhor é desistir. Se sair agora, ainda que suas pernas não aceitem mais corridas, ele sabe que conseguirá uma fuga. No entanto, demora-se no relembrar das muitas que já protagonizou. Demora-se tanto a lamentá-las, que perde a oportunidade de fugir.
Puxa a cortina de lado para uma sutil e atenta espiadela no futuro.
Não há mais tempo para as fugas.
Imagem: Omega’s Flight © Edvard Munch
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