PROJETOS INANIMADOS >> Carla Dias >>
Era sonho na infância. Tornou-se plano na adolescência. Adquiriu caráter de projeto na fase adulta. Cresceu com ela, mas diferente. Há sonho que a gente mantém até o fim, mesmo quando não acredita mais nele.
Ela acha que tem a ver com uma teimosia que não sabe controlar. Há quem diga que é coisa de pessoa doida.
Doida ou nem tão doida assim, era sonho na infância, e ela nunca sonhou sonho na infância com jeito de criança que sonha sonho na infância. Naquele tempo, ela já sonhava desmedido, não do jeito que sonha criança que quer mais é se esparramar numa nuvem de algodão doce.
Mais tarde, no adiante, descobriu que muitas crianças não sonhavam com se esparramar numa nuvem de algodão doce. Algumas delas sonhavam urgências ditadas pela fome, pelo frio e pela solidão oriunda das suas indeléveis misérias.
Quando se tornou plano, a adolescência a levou a embarcar em conhecimento. Sabia de tudo, um tudo frágil, capenga mesmo. Um tudo que servia somente ao imediatismo de quem necessitava se misturar ao mundo. Ela queria abraçá-lo, mas vivia às voltas com as perguntas de sempre:
Cadê os braços?
Cadê o afeto?
Cadê o zelo?
Cadê a importância?
Logo se deu conta de que urgências não respondiam aos questionamentos de cunho existencial, intimamente ligados ao seu plano. Porque o sonho se tornou um plano muito bem arquitetado, alinhado a uns pares de definições qualificadas para atender... ?
Transformou-se em projeto. Coube lindamente em papel timbrado, logomarca idealizada por profissionais, conteúdo redigido por profissionais, com direito à planilha orçamentária confeccionada por profissionais. Todos os envolvidos eram muito competentes e profissionais, como um projeto merece que o sejam.
Mas era sonho, no início de tudo, de quando nos vemos diante do primeiro deles a ser despertado. Como se ele morasse em nós, desde antes de sermos pessoa e esperasse apenas um sinal para se manifestar.
Manifestado, fazemos com ele o que o nosso desejo ordenar. Neste caso, tornou-se plano que se tornou projeto que se tornou inanimado.
Há vida nenhuma nele.
Ela o observa, assim, jazendo sobre a mesa do escritório, devidamente encadernado, espiral, capa preta. Ela o folheia... dezenas de páginas de dedicado esmiuçamento a respeito daquele sonho nascido nela, virado ao avesso ao se tornar plano e requintado ao se tornar projeto. Alguns trechos destacados com marcador, o amarelo fazendo as palavras saltarem aos olhos. Trechos que não lhe despertam interesse.
Assim, sobre a mesa da sala de reuniões, ele é um protagonista. Assim, no coração dela, ele é inanimado. Não há vida ali, onde a vida se fazia em algum antes. Não há viço... há todos os aspectos cuidadosamente analisados, cada passo projetado, todo conforto determinado, o prazer prospectado.
Como se a vida a ensinasse a recuperar fôlego, ela o deixa ali: inanimado, alinhado com o que chamam de evolução de um sonho, mas que, de fato, é a limitação dele, ao menos para ela. Nem todo sonho nasceu para se transformar em projeto de vida. Esse, por exemplo, morreu no meio do caminho, tornou-se outra coisa. Tornar-se outra coisa não é ruim. Aprende-se muito com a transformação. Porém, nem todo sonho existe para dedicação coletiva. É seu, de mais ninguém. É simples, mas tão simples, que parece impossível até sonhá-lo, imagine realizá-lo.
Daí que sonho nem sempre nasce para cair nos braços da realização. Às vezes, não raro, ele nasce apenas para mostrar as prisões que você quer evitar. É assim, feito um lembrete de que pode ser diferente... contanto que haja vida, viço, fôlego.
Imagem: Le rêve © Pierre-Cécile Puvis de Chavannes
carladias.com
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