COTIDIANO FELIZ >> Sergio Geia
Estou
aqui para ajudá-lo. Eu compreendo, sei que gostaria que eu viesse
outras vezes, que pode pagar, mas, infelizmente, você sabe, tenho
outros amigos que assim como você necessitam de mim. Você
compreende? Eu sei, tinha certeza que compreenderia. Prometo que logo
este problema estará resolvido; nossa equipe já está desenvolvendo
um novo sistema que me permitirá estar em mais de um lugar ao mesmo
tempo. Vamos então?
Antes
de tudo, abra um vinho. Tinto, de preferência. Comece a degustá-lo
com calma, sem pressa. De vez em quando olhe lá fora, veja a rua, as
pessoas caminhando, algumas indo para o trabalho, um casal de jovens
se beijando. Não, em absoluto! Não se recrimine por buscar na
memória aquele beijo roubado na esquina. Isso, acaricie o
pensamento, sorria, assim, veja como uma boa lembrança faz bem.
Você
quer me contar? Tudo bem, conte, adoraria saber. Entendo, sua
primeira namorada, você não sabia como dar o primeiro beijo. Não
sabia se falava alguma coisa, como fazer a aproximação, se
lentamente, como nas novelas. Decidiu de supetão? Ainda assim foi
bom? Compreendo. Ela gostou. E você também. Que bom. Não sabe por
que foi se lembrar disso agora, depois de tantos anos? Talvez os
jovens se beijando na esquina, aqueles lá, talvez a cena fez você
se lembrar.
Vejo
que a pia de sua cozinha ainda contém restos do jantar de ontem,
pratos sujos, copos, talheres e até uma panela no fogão. Lave-os.
Comece pelos pratos, bem calmamente, como num ritual, depois os
copos. Entre eles, os pratos e os copos, beba mais um pouco de vinho,
assim, depois volte aos talheres. Quando a pia estiver vazia, vá
para a panela; nesse caso, use um desengordurante.
Pia
limpa, agora sim, venha para a sala, sente-se confortavelmente em sua
poltrona de leituras, pegue o jornal. Vejo que gosta do Estadão.
Comece pelo Caderno 2, perceba o que os cronistas ─ esses seres
iluminados ─ têm a dizer. Enquanto lê uma crônica ─ veja se
está ai o Humberto Werneck, ele é muito bom ─, continue a
degustar o vinho. Sinta, sinta que delícia é ler algo bacana
bebericando uma taça de vinho. Depois da crônica, sugiro que pule
para a agenda cultural, veja as cenas que estão rolando. E
lembre-se: sem pressa. Para isso, se necessário, imagine uma
formiguinha, uma pobre formiguinha andando no quintal, ou um homem
sentado na praça sob a sombra de uma árvore. Veja: o mundo andando
loucamente, e eles nem aí com a hora do Brasil. Faça o mesmo.
Inspire-se.
Acha
que a mesa da sala de jantar está um pouco desarrumada? Isso o
incomoda? Tudo bem. Arrume-a então. Primeiro guarde os objetos que
ficaram esquecidos; vejo-a um pouco entulhada. Tire o pó com um pano
úmido. Por fim, estenda aquela toalha de flores verdes e azuis,
ponha o vaso com aquela plantinha que você tanto gosta, regue-a, ela
ficará mais verde e mais bonita.
Vi
que já acompanhou as notícias do jornal na tevê, já assistiu ao
esporte, às notícias de seu time, que, é bem verdade, não anda
lá bem das pernas, hora de almoçar? Pois bem. Esquente a lasanha no
micro-ondas. Coma o seu almoço com prazer. Há vinho na garrafa
ainda? Beba, não se incomode se ele o está deixando tonto, o seu
dia está livre mesmo, não há grandes compromissos à tarde.
Depois, terminada a refeição, você pode bebericar um licor para
ajudar na digestão, vejo que há muitas garrafas em seu bar.
Agora
sim, você pode se deitar. Faça a sua sesta costumeira. Sim, pode
ligar a televisão, é bom para atrair o sono. Sim, pode fechar as
janelas, escureça o quarto. Pijama? Isso o incomoda? Vestir pijama
às duas da tarde para dar um cochilo? Pois não se incomode.
Vista-o, vai deixá-lo mais confortável.
Depois
que acordar, volte para a pia, ficaram coisas lá. Da mesma forma,
lave tudo com tranquilidade e já deixe alguma coisa engatilhada para
o jantar. Tire um bife do congelador. Prepare aquela saladinha de
cenoura e repolho. Faça um arroz bem soltinho.
Separe
uma parte do tempo entre a tarde e a noite para a leitura. Como você
já terminou o livro que estava lendo, pegue um Machado de Assis.
Sim, um clássico. Retorne a Helena, por exemplo, não é o melhor
que você vai encontrar na obra machadiana, mas é muito bom também.
Ou, se preferir, Memorial de Ayres, um de meus prediletos. Busque
coisas novas lá, você vai encontrar.
Bem,
eu vou indo. Como parte do processo, essas coisas você vai fazer sem
ouvir a minha voz. De todo modo, se precisar, deixei gravado um
roteiro-guia. Amanhã eu volto e você me conta como foi. Se precisar
de alguma coisa antes, ligue, estarei à disposição.
Bom
descanso, bons sonhos.
(No
quarto escuro, ouviu-se um estalar seco, como se alguma coisa tivesse
se rompido ou desligado; um silêncio absoluto reinou, só quebrado,
de vez em quando, por um hiperbólico ruído vindo da cama).
Ilustração:
revoada.net/15-rostos-em-objetos-do-cotidiano/
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