O BAR DO FIM DO MUNDO >> Zoraya Cesar
A ESPELUNCA - O bar ficava escondido no meio de um matagal, e seu acesso era difícil, invisível a quem passasse na estrada. Distava muitos quilômetros da cidade mais próxima e não era um local bem afamado. Sexo, jogatina, bebida, algumas drogas, negócios escusos, diziam, eram tolerados, desde que não houvesse baderna – o dono do bar, que nunca fora visto por vivalma, mas que era temido exatamente por isso, se é que me entendem – não gostava que estragassem a mobília de plástico, o balcão de madeira carcomido, suas caixas de som Yamaha CIS. Em caso de contendas ou desavenças, a turma do deixa-disso e a turma do que-se-dane davam um jeito. Diziam também que, de vez em quando, gente desaparecia por lá, gente sem importância, que ninguém se preocupava muito em procurar. Boatos, claro, o mundo anda cheio de fake news. E isso só aumentava a aura mítica do bar.
Essa fama – e também a comida razoável, a bebida barata e o som dançante - atraía não só o pessoal do submundo, mas também gente comum, simples, até - caminhoneiros, comerciárias, motoristas, um ou outro roceiro mais abastado. E também pessoas de extratos sociais mais elevados. Tinha de tudo. Todos querendo um pouco de diversão, um pouco de sexo, um pouco de perigo. (Quem não dá valor à própria vida gosta de arriscá-la.) Qualquer um era bem-vindo, desde que por sua conta e risco, como deixava claro o aviso acima da porta:
Cuida da tua vida que aqui ninguém
vai cuidar.
O que acontece aqui fica por aqui.
O ANASTÁCIO* - Rinaldo entrou, confiante, as botas lustrosas, a fivela do cinto brilhando, camisa justa o suficiente para mostrar quão musculoso era, calça apertada o bastante para delinear a bunda redonda (que ele cria ser igual à do Mel Gibson). Passara quase um ano procurando por aquele bar, até que, do nada, um motorista de caminhão lhe dera a dica.
Ansioso por provar aos amigos que era um cara descolado e destemido, Rinaldo foi, sem pensar duas vezes, sem avisar ninguém (vai que não o deixassem entrar, ou não encontrasse o lugar, ou tudo não passasse de embromação. Seria humilhação demais, melhor contar depois).
Procurava, os olhos ávidos, o pau faminto, por uma mulher disposta a passar alguns momentos com ele. Uma conversa de cerca-lourenço, uma bebida, uma dança, uns chamegos e depois um vamos-ver no final da noite. Se ela fosse bandida, procurada pela polícia, melhor - teria uma história ainda mais excitante para contar. A uma mulher comum ele tinha acesso na vida diária. Queria algo diferente, emocionante. Desfilou o corpo pra lá e pra cá, naqueles passos de pavão em época de acasalamento. Sentou-se, finalmente, bebendo uma cerveja, impressionando com o ambiente, feliz consigo mesmo: sentia-se um verdadeiro outsider.
Passou os olhos por seus colegas de bar. Os que não estavam dançando espalhavam-se pelas mesas, jogando, conversando, fumando, e, alguns, namorando. Gente normal, pensou. Um ou outro tinha cara de procurado vivo - ou, de preferência, morto -, mas eram exceções.
A noite aprofundou-se, densa e irascível, às duas da manhã, soprando ventos gelados, ameaçando temporal. Quem estava fora, entrou. O bar ficou mais cheio, naturalmente; o ar, mais abafado; o burburinho, quase ensurdecedor. O forró foi trocado por uma espécie de sertanejo ensino-médio, tocado em altos decibéis. Rinaldo estava cansado. Eles devem tomar estimulante na veia, para estarem tão animados até agora. Cansado e decepcionado. Não se divertira, não vira “nada de mais”, de pitoresco ou perigoso que justificasse a fama do lugar e, pior, não conseguira ficar com ninguém. Tomara cinco cervejas, estava meio tonto. Preparava-se para ir embora, quando uma mulher sentou-se à sua frente.
ENCONTROS E DESPEDIDAS - Não era, exatamente, bonita, nem, olhando mais de perto, muito jovem. Nada em sua aparência era destinado a seduzir: os traços eram irregulares; os cabelos, curtos; vestia-se com sobriedade, toda de preto, sem decotes ou pernas de fora. Era muito magra e muito pálida. Mas emitia um sex-appeal inexplicável e irresistível.
Ela começou a conversar, a voz melíflua e cantante, mesmo por cima da algazarra. Rinaldo encantou-se. Nunca uma mulher fizera tantas perguntas sobre sua vida, nem tecera comentários tão elogiosos à sua aparência, nem demonstrara tão evidentemente que estava a fim dele. Seu cansaço desaparecera. Dançaram, riram, beijaram-se. “Vamos beber alguma coisa antes de sair”, sussurrou ela em seu ouvido. Rinaldo, obediente como uma ovelha resignada, concordou. Beberam mais duas cervejas – ela acariciando o pau de Rinaldo por debaixo da mesa; ele, em estado de graça. Em estado etílico. Em estado de sono irreprimível. Em estado semi-inconsciente.
A sedução só funciona quando o ego da vítima é grande. Ou frágil. |
Debruçado na mesa, a boca aberta, dormia o sono dos drogados. Ao discreto sinal de cabeça da mulher, dois homens apareceram (um deles, o caminhoneiro que ensinara a Rinaldo como chegar ali) e carregaram o corpo inerte para fora. Ninguém reparou, e, se tivesse reparado, não teria estranhado – era normal bêbados serem levados pelos amigos; e, também, ali cada um cuidava da sua vida. Essa era a regra.
Jogaram o corpo numa van e partiram. A mulher acendeu um cigarro. Esse aí vai ser bom. Saudável. Forte. Devem aproveitar todos os órgãos. Mais uns cinco desses e posso me aposentar. Apagou o cigarro, raivosa, com o pé. Preciso largar desse vício desgraçado. E voltou para o bar. Estava com fome.
*anastácio – gíria para designar otário
http://www.paginalegal.com/2008/02/04/girias-do-submundo-do-crime/
foto: pinterest
Comentários
Pela descrição da mulher fumante, creio que os pulmões de Rinaldo serão de boa valia.
e não é que dá até um medinho...
Moral da história II: quem procura, acha...