ESPERA >> Carla Dias >>
À mesa do bar de sempre, cercado pelos amigos de uma vida, foi espezinhado por falar de amor com deleite petulante. Quem quer saber de floreios diante de tanta miséria? Das casas e das almas? Quem quer palavras das quais nem mesmo entendem sentido para acarinhar comprometimento?
Quem ganhou a partida de futebol de ontem?
Nem mesmo ele entende o que lhe acontece. Esse aperto, esse apreço, esse desespero em forma de felicidade arrependida. Não sabia que era possível gostar de jeito desse, com taquicardia. Engoliu um calmante, pensando que o comprimido aliviaria sua angustia. Dormiu algumas horas e acordou ainda mais atormentado. Entendeu nada e maldisse a bula do remédio. Jurou aos santos de seu apego que daria a volta por cima. Duas horas depois, chorou miúdo de saudade, a lua minguando a perder de vista.
Depois de uma eternidade de trabalho árduo, sentou-se à mesa do bar da esquina, cercado por seus biógrafos de infância. Pediu que viessem garrafas de seu veneno de preferência. Envenenou-se até sentir a consciência comprometida pela coragem covarde de maldizer aquele sentimento. Praguejou o amor com a palavra, enquanto a alma se rendia a ele. Dizia ser impossível enfeitar a miséria com amor, enquanto o amor o engolia.
Essa agonia que o consumia, também paralisava sua realidade. Deu de gastar horas contemplando tempo que passava e horizontes. Cada vez mais silente, de feição grave, tornou-se a preocupação-fetiche dos que o cercavam. E também objeto de escárnio.
Ainda outra noite, sentado à porta de sua casa, a rua movimentada pelo verão que não permitia as pessoas ficarem abrigadas por paredes e telhados, uns moleques aí fizeram coro e cantaram uma versão de uma famosa marchinha de carnaval: olha acara dele/olha a cara dele/ele pensa que amor/é coisa que ele sente/mas o que ele sente/mas o que ele sente/o idiota do amor/sente dor de dente. Depois saíram correndo, as gargalhadas ecoando alto.
Comida requentada, ele aguenta. Não se importa de trabalhar sem folga, domingo a domingo. Aguenta. Usar sapato de sola gasta, de permitir os pés sentirem doído as pedras, isso ele aguenta. O que ele não aguenta mais é se desentender com esse sentimento. Não o compreender, não o aceitar, não aceder aos devaneios que ele inspira.
À mesa do bar de sempre, observado por silentes amigos de uma vida. Eles não têm mais energia para escarnecer do amigo, diante de seu sofrimento. Um deles pergunta se, sendo o contentamento a matéria-prima do amor, como o amigo pode se esbaldar desse jeito em tristeza? O outro questiona essa lamentação toda diante do que, rezam as revistas e as telenovelas, deveria ser algo capaz de dar força, em dias de tempestades lascadas, e de proporcionar prazer. Por que dói tanto nele?
À mesa do bar de sempre, esquina da sua casa de uma vida, na companhia de seus amigos de infância, após um dia de trabalho que mantém há décadas, ele confessa, o coração rendido à taquicardia, que sua aflição vem do fato de que ele ama, e ama intensamente, alguém que ele ainda não conheceu, e que a espera tem sido excruciante e vazia.
Silêncio.
Então, um grita pela próxima cerveja, o outro gargalha e diz que o clube do seu coração precisa trocar o atacante para ganhar campeonato. Tem aquele que pede para o dono do boteco soltar aquela do Waldick Soriano, que é para ornar com o momento coração partido por antecipação, de seu companheiro de pileque. E ainda o outro que começa um discurso enviesado sobre o preço que cobraram pela funilaria do seu quatro portas.
Ele engole um calmante com uma dose de pinga, rezando para Deus e o diabo, que aceita ajuda de qualquer um capaz de curar essa desolação. Que amar quem ainda não se conheceu é sonhar com o céu, enquanto mingua no inferno.
À mesa do bar, ignorado pelos amigos, ele cantarola bem baixinho: olha a cara dele/olha a cara dele/ele pensa que amor/é coisa que ele sente/mas o que ele sente/mas o que ele sente/o idiota do amor/sente dor de dente.
Sente amor pelo ausente.
Imagem © Christian Rohlfs
carladias.com
Comentários
Albir, acho que entendo isso como o lado B do tudo. Não confio em felicidade plena. Confio em felicidade em desalinho, onde a tristeza e os desapontamentos fazem bem o seu papel. Beijo.