AI, MEU CORAÇÃO! - V >> Albir José Inácio da Silva
Continuação de 6 de fevereiro:
(Tentando trabalhar, Bóssi sentiu crescer a angústia pela
falta de notícias. Sua mente divagou pelos antecedentes não muito recomendáveis
do pupilo e pelos acontecimentos dos últimos dias.)
Foi assim que Bóssi encontrou
Neném há vinte anos, desprezado e ameaçado por toda Tarietá, sem estudo, sem
trabalho, sem perspectivas. Mas Bóssi sempre tinha perspectivas para todos.
Neném tinha dezessete anos quando
entrou para o time do Tarietense, em mais uma tentativa da mãe zelosa comprar
para o filho alguma direção na vida. Bóssi costumava assistir os treinos do
clube. Aquele garoto não jogava grande coisa, mas era aguerrido, catimbeiro e
disponível. Passava o dia no clube em conspirações e intrigas. Bóssi viu
potencial.
De início pediu alguns favores,
tarefas simples que o moleque cumpriu com diligência. Neném foi se aproximando
com interesse pelo clube e paixão pela camisa.
Entre os amigos da sociedade tarietense
não faltaram críticas ao novo ajudante, nada se ouvia de bom sobre ele. Mas
como ele não estava procurando um relações-públicas, não deu ouvidos. Em pouco
tempo Neném já era o seu braço direito. Tarefas que antes não podia confiar a
ninguém encontraram em Neném um despachante determinado e sem escrúpulos. Não
que tenha se emendado. Nada mudou na essência. Foi adestrado, dirigido e
protegido por Bóssi.
Não se pode dizer que o plano era
de Neném - incapaz de elaborações mais complexas. Mas a verdade é que Bóssi tentava
superar a derrota nas eleições, quando um inconformado Neném vaticinou:
- Algumas vitórias podem fazer
muito mal à saúde.
Daí em diante foi com Bóssi. Essa
era sua especialidade. Voltaram ao clube, tinham saído sem falar com ninguém
depois da apuração. Cumprimentaram Araquém pela vitória, Bóssi entregou-lhe as
chaves e marcou uma reunião para o dia seguinte, antes da posse, para tratarem
da transição. O resto já conhecemos.
Apesar da preocupação de Bóssi
com os faniquitos do pupilo, ele se saiu muito bem e desapareceu na estrada. Mas
agora a falta de notícias já estava dando nos nervos. Onde se meteu aquele
moleque?
O ACIDENTE
Naquela manhã Neném pulou na
garupa da moto com o coração aos pulos. Era disso que gostava, esse era o seu
talento. Quase agradecia a Deus por terem perdido as eleições. E agora
agradecia mesmo o sucesso do dia em breves orações acompanhadas pelo sinal da
cruz.
Talvez com ciúmes pela traição de
uma alma que já considerava sua e agora se desmanchava em preces, uma entidade
vingativa trouxe para o asfalto limpo e brilhante, naquela manhã de sol, um
paralelepípedo. Por que um paralelepípedo, se não os havia num raio de
quilômetros? Não sei, mas há quem diga que isso reforça o caráter sobrenatural
do acidente.
Desgovernada, a moto se
precipitou pelo declive suave de um bananal à margem da estrada e os ocupantes
foram arremessados para cima antes de caírem no chão. O chão pedregoso estava
então coberto de folhas e caules de bananeiras da última colheita.
O piloto se examinou sem achar
maiores estragos. Só escoriações e uma torção no tornozelo direito. Quando a
tonteira passou, pôde ver Neném caído muitos metros abaixo. Usando um galho
como muleta, ele mancou até lá.
Neném acordou. Firmou-se nos
cotovelos e levantou a cabeça. O piloto pode ver o sangue que lhe escorria do
nariz, descia pelo queixo e encharcava o peito.
- Neném, você tá bem?
Neném baixou os olhos para o
sangue que pingava no chão e deu um grito:
- Ai, meu coração! – e desmaiou
de novo.
O outro entendeu que era dor no
peito, pensou em infarto, e viu que o companheiro estava perdendo muito sangue.
Era grave, precisava de ajuda. Neném
levantou de novo a cabeça e suplicou:
- Um padre! Preciso me confessar!
– disse, já num fio de voz, e apagou.
(Continua em 15 dias)
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