CAFEZINHO LITERÁRIO >> Sergio Geia
Alguém começa: “E depois de fazer tudo o que
fazem, os dois se levantam, tomam banho, passam talco, passam perfume, se
penteiam, se vestem, e assim vão voltando progressivamente a ser o que não são”
(“Amor 77” – “Um Tal Lucas” – Julio Cortázar).
Uma mulher fala de Hamlet, e reproduz Polônio:
“Ainda estás aqui, Laertes? Para bordo! Que vergonha! O vento está soprando na popa
de teu navio e só se espera tua chegada. Aproxima-te. Que minha bênção te
acompanhe, bem como estes poucos preceitos que confio à tua memória. Pensa
antes de falar e pensa antes de agir. Sê familiar, mas nunca vulgar. Os amigos
que tiveres e cuja adoção puseres à prova, sujeita-os à tua alma com arcos de
aço, mas não calejes a palma de tua mão com apertos a todo sujeito mal saído
ainda implume da casca do ovo. Tem cuidado em não entrar em querela, mas, uma
vez, nela, faze tudo para que teu contrário sinta temor. Presta ouvido a todo
mundo, mas a poucos a tua voz. Escuta as censuras dos demais, porém reserva teu
juízo. Que tua roupa seja tão custosa quanto tua bolsa o permitir, mas sem
afetação; rico, mas não extravagante, porque a roupa revela o homem e, na
França, as pessoas de mais alto conceito e posição são, a este respeito, modelo
de finura e distinção”. E ela conclui: “Adeus! Que minha bênção faça frutificar
tudo isto em ti!” (“Hamlet” – William Shakespeare).
Dr. Paulo sempre me chama; desta vez, fui. É
assim: convidam-se amantes de literatura, gente que escreve coisas ou gente que
não escreve nada (mas aprecia uma boa composição); preenche-se o formulário na
chegada, ao lado do nome, o título do texto; depois, quando todos estão
reunidos no salão, chamam-se os oradores para a leitura; pode fazer
comentários, pode contar os bastidores do texto, pode falar qualquer coisa,
além de ler a crônica, ou o conto, as trovas ou declamar um poema. O convite
também pede um livro para sorteio entre os presentes. A iniciativa foi batizada
de “Tertúlia Literária Periódica”, e é organizada pelo MMCL – Movimento Médico
Paulista do Cafezinho Literário. O nome é pomposo, mas o encontro é singelo e prazeroso.
O Geia não levou Cortázar, nem Shakespeare; levou
os seus “Vizinhos”, crônica muito simples e absolutamente verdadeira, fato
corriqueiro que deve acontecer com qualquer bom cidadão. Muitos na rua ainda me
perguntam se é verdade o que digo, ou se há um pouco de imaginação; pois sempre
respondo que em “Vizinhos”, tudo, mas tudo mesmo é a mais pura e impoluta
verdade. Desde a história da compra da chacrinha, dos finais de semana na roça,
do cachorro chorão, e até das cheiradas e do ovo. Perguntam também se arranjei
encrenca por causa da crônica; não arranjei. Está certo, devo confessar, que me
mudei antes da publicação, o que não me permite afirmar com total segurança se
a relação azedou ou não; outro dia passei por lá e tudo estava nos conformes. Se
bem que a crônica é despretensiosa, ingênua, incapaz de macular qualquer
relação honesta e harmônica de amizade.
Mas não são todas assim; esse gênero dito “menor”
está com um pé na realidade e o outro na ficção. O divertido é ver o amigo se
perguntar: “Mas será? Isso, de fato, aconteceu mesmo, ou ele está inventando?”
Ah, isso é bom. Escrevi uma vez sobre uma borboleta que encontrei morta no
chão. Essa parte é verdadeira; de fato, caminhando pela Avenida José de Angelis
(aqui, se o senhor me permite, honrado leitor, preciso fazer um adendo: conheci
o bom cidadão José de Angelis, fazendeiro probo e sanfoneiro dos bons;
trabalhamos muito tempo juntos, aos domingos, pela manhã: ele com sua sanfona,
o Geia com seu violão; pois agora o saudoso amigo que se foi, deixando enorme
saudade, virou avenida, uma homenagem muito merecida) mas caminhando pela
Avenida José de Angelis, me deparei com uma borboleta morta na calçada; e
depois, em casa, encontrei outra; tudo isso, de fato, aconteceu; porém o
resto... Se tiver curiosidade, procure por este mundo eletrônico e vai achar “A
borboleta”, do Geia; foi puro exercício de imaginação.
No final do encontro tive a honra de ser
agraciado com o livro “O Verão e as Mulheres”, do não menos saudoso Rubem
Braga. Para mim isso foi de uma enorme satisfação, pois acompanho a obra do
Braga, e se minhas crônicas lembram alguma coisa do velho Urso, não é mera
coincidência.
E de onde o velho Braga estiver, se escuta esse
humilde discípulo seu, peço-lhe a anuição para arrematar esse cafezinho com uma
delicada pétala de seu imenso e olente jardim:
“Procura-se um caderninho azul escrito a lápis e
tinta e sangue, suor e lágrimas, com setenta por cento de endereços caducos e
cancelados e telefones retirados e, portanto, absolutamente necessários e
urgentes e irreconstituíveis. Procura-se e talvez não se queira achar, um
caderninho azul com um passado cinzento e confuso de um homem triste e
vulgar... Procura-se, e talvez não se queira achar” (“Procura-se”, outubro de
1948, “O Homem Rouco”, Rubem Braga).
Ilustração: www.poemasfrasesetextos.wordpress.com
Comentários
Como você afirmou, ele é singelo e despretensioso, mas tem servido para alegrar muita gente, por muito tempo.
Continue comparecendo. Sua presença, com seu talento, engrandece nosso encontro e muito nos alegra.
Abraço.