ACUSADO >> Carla Dias >>
Não vai se arriscar a dizer palavra que seja para explicar seu silêncio. Que aprendam a decifrá-lo, caso ainda haja algum interesse sobre ele. A dívida é antiga, vem de antes de terem lhe cerzido o destino com invencionices. Foi na conta de um olhar impaciente, uma suposição lançada ao mundo por puro desejo de cutucar o desconhecido, o descuido de reescrever fatos para embelezar monólogo baseado no desejo de chamar atenção de um ao esgarçar a honra do outro.
Honra...
Sorri ao pensar na palavra. Conheceu poucas pessoas capazes de compreender e viver o sentido dela, sem que o desejo por algo ou alguém não tivesse atiçado o nascimento de uma versão mais flexível, para benfeitoria exclusiva de seus autores. Ele mesmo ainda não foi capaz de mergulhar no sentido dessa palavra a ponto de vivê-lo sem se sentir seduzido pelas suas versões. Dedica-se a adquirir tal habilidade.
Talvez por isso tenha oferecido a eles o seu silêncio. Disse nada a respeito, não se manifestou se valendo da tecnologia, para que suas palavras ganhassem o mundo tão rápido quanto as histórias inventadas sobre ele. Não se explicou aos familiares e aos amigos, nem mesmo retratou-se no trabalho.
É claro que seu silêncio o levou a perder tudo o que tinha naquela época: amante, amigos, companheiros de jornada, colegas de trabalho. Sim, também perdeu credibilidade diante da família e dinheiro, o que lhe custou muitas noites mal dormidas, uma pilha de contas não pagas sobre a escrivaninha, corte de luz, água, despejo, ter de morar nas ruas.
Nas ruas, conheceu pessoas tão desconectadas da realidade que ele conhecia, que se deu conta de que não importava mais. Quem ele foi, antes de reescreverem sua biografia, não fazia mais sentido.
As pessoas ainda o observam com curiosidade afiada. Hoje sorriem quando ele passa, cumprimentam-no como se fossem amigos de infância, oferecem-lhe gentilezas, tentam chamar sua atenção e conquistar seu afeto. Ele não se importa com essa atenção. É atencioso com todos, respeitoso. Ainda assim, silente. As pessoas não se conformam com não conseguir tirar dele um comentário a respeito dos tópicos do momento: o que você acha? Ele sorri e as pessoas seguem em seus monólogos vazios, preenchendo o tempo na companhia dele com o som das próprias vozes.
Não importa como ele se reinventou, tampouco que hoje seja o que alguns tolos chamam de “exemplo”. Os exemplos que preza não se debruçam nos infortúnios das pessoas, mas em quem elas são, com toda a variedade de predicados que um ser humano coleciona dentro de si. E muitos deles nem mesmo sabem que são exemplos.
Mantém os longos passeios pelas ruas da cidade, comparece aos almoços de domingo da família, celebra a chegada de novos membros a essa sociedade que se liga pelo sangue, pelo afeto, pela cumplicidade e, às vezes, pelo oposto disso tudo. Se há algo que compreendeu, ao ter sua vida modificada de forma tão agressiva e alheia a sua vontade, é que uma mentira desferida em um sopro pode ganhar a força de uma tempestuosa verdade. Ainda assim, trata-se de uma impostora. Eventualmente, ela retomará seu lugar de invencionice.
Quem o acusaram de ser ele nunca foi. A princípio, esperneou, na tentativa de mostrar o óbvio. Então, compreendeu que, diferente do que pensava, a verdade nem sempre é óbvia ou palatável aos que apreciam um escândalo para assistir. Quem é não se tornou impecável ser humano, tampouco deseja isso. Suas mazelas têm sido desafio que ele encara cotidianamente. Seus defeitos ele apenas não permite que liderem seus desejos, mas os aceita e os enfrenta. Ninguém o conhece melhor do que ele mesmo.
Quem ele é, sorri e silencia.
Imagem: Jaune-rouge-bleu © Wassily Kandinsky
carladias.com
Comentários
Gostei muito de sua crônica. Li e reli com bastante
atenção.
Em determinado instante pareceu-me ler a poesia
-If- de Rudyard Kipling .
Parabéns por ter colocado um pouquinho de cada
um de nós, em seu trabalho.