NO BANHEIRO>> Analu Faria
Lá estava eu ansiosíssima para ver Adélia Prado em carne, osso e lirismo, na Bienal do Livro, aqui em Brasília. Eu nem achava que teria uma oportunidade dessas na vida, nunquinha. Tudo bem que eu nunca tinha tentado. Eu poderia ter ido a Divinópolis, que, aliás, fica bem perto da cidade dos meus avós, onde ainda mora um tanto de família minha. Eu poderia ter procurado na internet algum evento em que ela daria uma palestra ou algo assim, lá na cidadezinha mineira, sei lá. Eu poderia ter sido uma tiete mais competente, confesso. Não fui. Talvez por isso eu estivesse ansiosíssima, achando que a vida me sorria à-toa ao me dar de mão beijada uma palestra da Adélia Prado, na cidade onde eu moro, a muitos quilômetros de Divinópolis.
Cheguei cedo. Queria pegar um bom lugar na plateia. Uns quinze minutos antes da hora marcada, eu já estava sentadinha no meu lugar, quando me bate aqueeeela vontade de fazer xixi. Õ Meu Deus, bexiga é que nem mandato político - funciona nas horas mais inconvenientes! Saio do meu lugarzinho, em direção ao banheiro, morrendo de medo de que aconteça alguma coisa no caminho que me impeça de ver Adélia.
Quase na porta do banheiro, vejo uma mocinha correndo loucamente pelos corredores da Bienal. Pensei que era RPG, que era cosplay de qualquer coisa. Mas a moça estava vestida como as pessoas comuns do século XXI. E não era adolescente. Chego perto da entrada do banheiro e vejo a tal mocinha comentar com o segurança, já com cara de quem vai perder o emprego: "Não tem papel para a convidada! Não tem papel no banheiro!"
Agora deixa eu te explicar uma coisa, se você nunca foi a um evento "cult" (bienal é cult): sempre tem aquela renca de convidados - secretário de cultura, filho do secretário de cultura, assessor parlamentar para assuntos extraordinários do governo federal, do governo estadual, do governo distrital, do município vizinho, parente da Marcela Temer, sobrinho de não-sei-quem etc.. E esse povo fica na frente, nos melhores lugares da plateia, bem ali pertinho de quem está palestrando ou se apresentando, mesmo que eles nem saibam de quem se trata. Então quando ouvi a mocinha dizer que uma "convidada" tinha ficado sem papel no banheiro cheguei a esboçar um sorrisinho de brasileira indignada (e um tantinho rancorosa, porque eu nunca estive entre os "convidados") e entrei no tal banheiro com a cara de triunfo que Deus permite a uma mortal ter - eu tinha papel higiênico na bolsa; a convidada, não.
De dentro da baia onde fica o vaso sanitário, ouço uma voz "Ah, obrigada. Sem papel não dá, né?"Atrás de mim, a mocinha chega esbaforida com um rolo de papel daqueles de banheiro público na mão. A moça suspira de alívio e estende a mão para a voz de dentro da baia. E de dentro daquele cubículo sai Adélia Prado, com cara de mulher-de-todos-os-tempos, propriamente vestida e esperando um papelzinho higiênico. Adélia Prado com problemas de gente comum. Adélia querendo fazer xixi que nem eu. Adélia, ali, no banheiro, a uns dois metros de distância de mim, que fiquei com a boca aberta e não consegui articular uma palavrinha sequer.
Olhei para a mocinha e cochichei, enquanto Adélia entrava no cubículo e fechava a porta, para fazer seu xixi com dignidade: "É elaaaa!!!" A mocinha me olhou como quem diz: "Quem se importa? Eu não vou mais ser despedida!"Acho que, por educação, ela me confirmou com a cabeça que sim, era "ela".
E o que é que EU ia fazer? Tietar a mulher enquanto ela fazia xixi? Ficar lá parada, estalqueando uma das maiores escritoras do país? Pedir para ela me dar um autógrafo num pedaço de papel higiênico? Eu pensava nisso tudo enquanto mecanicamente olhava para dentro de uma outra baia, para checar as condições do vaso sanitário. Nem sei se dava ou não para fazer xixi ali. Sei que duas vozinhas tomavam toda a minha atenção, me impedindo até de raciocionar direito: "Você tem que fazer alguma coisa!!! É a Adélia Pradooo!!!" E a outra puxava a orelha da primeira: "E o que é que ela vai fazer, ô tonta! A escritora vai pensar que ela é psicopata, que fica seguindo gente até o banheiro, tá louca?"
Por fim, a segunda voz venceu. Voltei meu estupefata para o meu lugar lá na plateia, ainda sem acreditar que tive a oportunidade de ficar quase a sós com Adélia Prado. O xixi? Esqueci. Só lembrei quando sentei de novo e a bexiga deu aquela apertada.
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