MINHA VIDA COM AMELINHA - 1a parte >> Zoraya Cesar

Tudo na vida tem explicação lógica. Até mesmo minha vida com Amelinha. 

Moro sozinho. Vivo sozinho. Não tenho peixes num aquário. Não bebo cerveja com os amigos. Não tenho amigos. As poucas pessoas que me conhecem me têm por conta de misógino e esquisitão.

Sempre fui assim. Até hoje não sei por que casei com Amelinha. Talvez porque sejamos tolos quando jovens. Talvez porque ela fosse bem de vida e eu estivesse precisando de dinheiro. Talvez, sei lá. Carma. Mas eu não acredito nessas coisas. Tudo na vida tem uma explicação lógica.

O fato é que casei, na esperança de ter uma vida tranquila, financeira e emocionalmente. Sou químico, preciso de sossego para fazer meus estudos e experimentos. Casando com Amelinha consegui estabilidade financeira para montar meu laboratório  em casa e dar continuidade ao meu doutorado. Só não consegui paz de espírito.

Amelinha era carente. Carente, exigente, ciumenta, explosiva. Alternava momentos de ternura enjoativa com cenas de ciúme mexicanas. Não era bipolar não, era manipuladora, das profissionais. Descobriu meus pontos fracos: meu amor ao dinheiro dela e meu horror a discussões e polêmicas. Sabendo que eu, pesquisador pobretão, jamais me separaria dela, e que faria qualquer coisa por um pouco de paz, ela jogava com maestria e me mantinha em cativeiro. A constante intromissão, os escândalos injustificáveis, o falatório interminável, as explosões, os ataques físicos – jogava objetos em mim, quebrava coisas em meu laboratório – me exasperavam ao desespero. Fui obrigado a demitir minha bem treinada assistente e a empregar um molecote abestado, filho da cunhada de uma prima distante. Tudo porque cismou com a coitada da D. Lea, uma senhora mais velha que minha mãe.

Apesar de encontrar tanto desprazer no ato sexual quanto eu, Amelinha tinha gosto em me fazer encarar essa tortura pelo menos uma vez por semana. E, para aumentar o desgosto, Amelinha fumava, bebia e comia desbragadamente. Estava se transformando num tribufu. Tinha diabete, sobrepeso e insuficiência cardíaca, mas não se cuidava. E ai de mim se não cumprisse a contento minhas obrigações conjugais. E ai de mim se ela fosse contrariada. E ai de mim se ela acordava de mau humor. E ai de mim se chovia quando ela queria que fizesse sol. E ai de mim se a vizinha me dava bom dia. E ai de mim se isso, e ai de mim se aquilo...

Você deve estar cogitando, que doentia essa relação! A mulher, uma louca destemperada. O marido, um interesseiro apalermado, ausente e inútil. Por que não se separaram?

Porque nos merecíamos. Eu era um sujeito de personalidade dútil e apaziguadora, perfeito para o caráter manipulador obsessivo de Amelinha. Ela, por sua vez, adorava se posar de vítima e se queixar às amigas o quanto sofria com minha indiferença e o quanto era compreensiva em relação ao meu trabalho. Espalhava ao mundo que seu marido era doutor em Química. Doutor, ela enchia a boca.

Sei que Amelinha poderia viver indefinidamente naquela situação, ela se alimentava de meu desespero e dependência. Sempre dizia que eu era seu par para a eternidade, que jamais me deixaria ir. E eu, precisando de paz para desenvolver minhas pesquisas, mas precisando também de um laboratório onde trabalhar e do dinheiro para me sustentar, eu, um covarde tímido e sem dinheiro, ia, lentamente, enlouquecendo, por não ver saída para aquela situação.

Até que, um dia, ela morreu. Assim, do nada. Morreu.
Dizem que cigarro mata.
Mata mesmo.
Eu que o diga.

Mas, para tudo tem uma explicação. E os médicos explicaram que, desleixada como era, realmente, Amelinha poderia morrer de uma hora para outra. Tudo muito natural. Talvez por isso, e por meu comportamento absolutamente discreto e enlutado após o enterro, ninguém suspeitou que eu pudesse ter algo a ver com a morte de minha mulher.

E eu tive tudo a ver com a morte de minha mulher.

2a e última parte no dia 7 de outubro.

Comentários

Anônimo disse…
Já dá para prever de que ela morreu!
Quem mandou uma "mala" casar com um "químico"! E nem precisava ser químico, um pouco de "cloreto de potássio" resolveria o problema, sem despertar maiores suspeitas, hehehe...
Mas bem que o sujeito poderia ter mais criatividade e em virtude da carência, mata-la de prazer! Com o histórico de que fumava, bebia e comia desbragadamente, um bom "vibrador", dia sim e o outro também, ligado, pelo menos, 12 horas por dias resolveria a questão, ainda mais se usasse pilhas recarregáveis, ou melhor, ligar diretamente na rede elétrica, como os antigos, hahaha...
Unknown disse…
"Até que, um dia, ela morreu. Assim, do nada. Morreu." Quase soltei uma gargalhada alta quando li isso kkk. Personagens da Zoraya nunca morrem do nada. NUNQUINHA! Kkk
Vou ter que esperar duas semanas? Que absurdo!!!

Vai ver que o coitado não fez nada demais, só deu um empurrãozinho nas escadas...

Será que Felipe Espada deixará isso passar em branco?

Oh, céus, como sobreviverei a essas dúvidas atrozes!
Marcio disse…
Zoraya, quando eu li "Sou químico", ainda no início do texto, já sabia que ali havia um assassino.
Mas, é claro, na segunda parte você desmentirá essa minha certeza apressada.
Clarisse Pacheco disse…
Adorei, um pouco de pimenta nessa sexta-feira insossa!!!
Cri-crítico... disse…
Agora sim estou começando a reconhecer a assinatura de Mme. Zoraya. O perfil psicológico das personagens, tratado com simplicidade, mas bem estruturado. O humor suave, mas cáustico o suficiente, como uma base quimicamente forte, para neutralizar a acidez mórbida do tema repetidamente tratado. O desenrolar pontuado da trama, junto com a escrita mais limpa e precisa, dá ao texto um ar mais leve e despretensioso. Por tudo isto, com um pouco mais de esforço imaginativo, nem precisaria haver o suspense tipo “cena de ciúme mexicana” para encadear uma segunda parte. Resta agora a superação; espero um final com a mesma estatura do inicial.
sergio geia disse…
"Até que, um dia, ela morreu. Assim, do nada. Morreu". Eu pensei: "aí tem" rsrs. Mais uma delícia, Zoraya. Aguardando o desfecho.
Albir disse…
Ele nem precisava dizer que teve "tudo a ver".
Aretuza disse…
Só a Zoraya para fazer a gente torcer pelo assassino.

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