COMO ESCAPAR DESTE MUNDO (01): JOGOS
>> Eduardo Loureiro Jr.
Nasci a fórceps. Isso talvez explique minha resistência a este mundo e minha vontade de escapar. Esta é uma forma de ver a minha vida: uma série de tentativas de escapar deste mundo. Comecei pelos jogos, depois descobri os filmes, os livros, a matemática, a música, as paixões, a espiritualidade, o sono, a morte, a astrologia, o futuro, o saudosismo e outras coisas que devo estar esquecendo no momento.
Vou tentar recuperar uma pouco dessa trajetória de tentativas de fuga. Em si, esta recuperação de memória é também uma tentativa de fuga: escrever sobre o passado com um fone de ouvido gotejando anestésica música em minha mente é uma fórmula infalível para escapar por alguns minutos. Começarei pelos jogos...
Minhas memórias mais antigas envolvem jogos.
Lembro de jogar damas e firo com tabuleiros artesanais, feitos por minha avó, e talvez também por uma de minhas tias, desenhados em grosso papelão, tendo tampinhas de tubo de pasta de dente ou mesmo caroços de feijão e de milho como peças.
Lembro de ganhar estojos de jogos clássicos de minha mãe: além de damas e firo, ludo, bingo, resta um... Ludo era meu preferido. Eu gostava de lançar dados. Ainda gosto.
Meu pai me iniciou no xadrez. Quando comecei a escapar também por livros, reparava num velho livro de bolso, mas tão grosso que não cabia no bolso, capa dura marrom, um livro de xadrez, com imagens de tabuleiros e combinações de números e letras indicando posicionamentos de peças. Meu pai chegou a contratar um professor para me ensinar xadrez. Minhas aulas duraram até o dia em que meu professor particular chegou lá em casa bem na hora em que eu assistia a "O Mágico de Oz" pela televisão. Naquele dia, larguei o xadrez: ele representava a realidade da qual o filme poderia me fazer escapar.
Uma vez por ano, perto de meu aniversário, eu ia com minha mãe a uma loja de departamentos para comprar jogos. Parentes mais próximos me presenteavam com dinheiro, minha mãe juntava tudo e íamos nós para o dia mais feliz dos meus anos pré-adolescentes: eu olhava as caixas coloridas, minha mãe olhava as etiquetas de preço e eu voltava para casa com três, quatro, cinco jogos novinhos. Nos finais de semana seguintes, e por todas as férias de final de ano, eu jogava com meus primos. Horas muito bem escapadas com War, Detetive, Cartel, Scotland Yard, Escrete (criado pelo Chico Buarque!)...
Depois apareceram os primeiros computadores e os primeiros video games. Eu tive o PC 200 e o Telejogo. Aquela junção de jogo com televisão era uma bela forma de escapar, mesmo com gráficos que não passavam de tracinhos e quadradinhos.
E havia os jogos de carta, desde a infância, com todas as suas muitas variações: pife-pafe, oito-malucos, buraco mole, depois o duro...
Os jogos sempre estiveram por ali. Com os familiares. Com os amigos (como esquecer a primeira aula gazeada para jogar porrinha?). Com desconhecidos, quando surgiram os jogos online via internet. Muitas vezes sozinho.
Quando fiz 30 anos, os jogos voltaram a se tornar minha forma preferida de escape. Eu estava saindo de um profundo escape de paixão e, fazendo um doutorado com bolsa de estudos, tinha tempo e dinheiro suficientes para me dedicar ao hobby. Descobri os jogos de tabuleiro modernos, vindos principalmente da Alemanha, e entrei profundamente nesse mundo, a ponto de retomar estudos do idioma alemão, que eu havia abandonado, para ler as regras dos jogos no original. Comecei a fazer uma coleção dos jogos vencedores de um prêmio alemão anual de jogos de tabuleiro. Todo final de semana, reunia familiares e amigos em casa, formávamos três ou quatro mesas simultâneas e jogávamos desde a tarde de sábado até a madrugada do domingo. Escape perfeito. Durante a semana, havia novos jogos para pesquisar na internet, listas de discussão virtual para conversar e, quando chegava uma nova caixa dos Correios com dois ou três jogos, eu e minha então companheira não esperávamos pelo final de semana, colocávamos uma toalha sobre a cama e aprendíamos um novo jogo: Catan, Adel, Café Internacional...
Quatro anos depois, acabou o doutorado, acabou o casamento e quase acabaram-se os jogos. A morte parecia ser a melhor alternativa de escape, mas, de alguma forma, eu sobrevivi. E os jogos também. Não como protagonistas, mas como coadjuvantes. Hoje vejo com muito espanto a proporção que tomaram os jogos de tabuleiro modernos no Brasil: são sites, canais do Youtube, luderias, jogos nacionais... De vez em quando, dou uma espiada nesse mundo, mas não possuo as condições financeiras para escapar por essa via no momento.
Relendo o que escrevi até agora, percebendo quantos jogos e quantas situações vividas ficaram ainda por registrar, me impressiono com a força dessa forma de escape em minha vida. A forma lúdica. Talvez a mais pura das formas. A forma mais infantil. Mais ingênua. Mais inofensiva (não gosto de jogar apostado). Se eu fosse escapar agora, neste exato momento, por algumas horas, eu gostaria de escapar aprendendo a jogar "CV — O que aconteceria se...", um jogo em que, lançando e alocando dados, vamos acumulando cartas com experiências de vida, desde a infância até a velhice.
Mas é hora de voltar para este mundo. Ele me puxa da forma mais categórica: a fisiológica. Não há mais como escapar escrevendo, ouvindo música e sonhando com jogos de tabuleiro. Preciso ir ao banheiro. Volto outra hora, lembrando e contando como muitas vezes escapei deste mundo com os FILMES.
E você, caro leitor, o que usa para escapar deste mundo? Ou você gosta deste mundo e não tem vontade de escapar dele?
Vou tentar recuperar uma pouco dessa trajetória de tentativas de fuga. Em si, esta recuperação de memória é também uma tentativa de fuga: escrever sobre o passado com um fone de ouvido gotejando anestésica música em minha mente é uma fórmula infalível para escapar por alguns minutos. Começarei pelos jogos...
Minhas memórias mais antigas envolvem jogos.
Lembro de jogar damas e firo com tabuleiros artesanais, feitos por minha avó, e talvez também por uma de minhas tias, desenhados em grosso papelão, tendo tampinhas de tubo de pasta de dente ou mesmo caroços de feijão e de milho como peças.
Lembro de ganhar estojos de jogos clássicos de minha mãe: além de damas e firo, ludo, bingo, resta um... Ludo era meu preferido. Eu gostava de lançar dados. Ainda gosto.
Meu pai me iniciou no xadrez. Quando comecei a escapar também por livros, reparava num velho livro de bolso, mas tão grosso que não cabia no bolso, capa dura marrom, um livro de xadrez, com imagens de tabuleiros e combinações de números e letras indicando posicionamentos de peças. Meu pai chegou a contratar um professor para me ensinar xadrez. Minhas aulas duraram até o dia em que meu professor particular chegou lá em casa bem na hora em que eu assistia a "O Mágico de Oz" pela televisão. Naquele dia, larguei o xadrez: ele representava a realidade da qual o filme poderia me fazer escapar.
Uma vez por ano, perto de meu aniversário, eu ia com minha mãe a uma loja de departamentos para comprar jogos. Parentes mais próximos me presenteavam com dinheiro, minha mãe juntava tudo e íamos nós para o dia mais feliz dos meus anos pré-adolescentes: eu olhava as caixas coloridas, minha mãe olhava as etiquetas de preço e eu voltava para casa com três, quatro, cinco jogos novinhos. Nos finais de semana seguintes, e por todas as férias de final de ano, eu jogava com meus primos. Horas muito bem escapadas com War, Detetive, Cartel, Scotland Yard, Escrete (criado pelo Chico Buarque!)...
Depois apareceram os primeiros computadores e os primeiros video games. Eu tive o PC 200 e o Telejogo. Aquela junção de jogo com televisão era uma bela forma de escapar, mesmo com gráficos que não passavam de tracinhos e quadradinhos.
E havia os jogos de carta, desde a infância, com todas as suas muitas variações: pife-pafe, oito-malucos, buraco mole, depois o duro...
Os jogos sempre estiveram por ali. Com os familiares. Com os amigos (como esquecer a primeira aula gazeada para jogar porrinha?). Com desconhecidos, quando surgiram os jogos online via internet. Muitas vezes sozinho.
Quando fiz 30 anos, os jogos voltaram a se tornar minha forma preferida de escape. Eu estava saindo de um profundo escape de paixão e, fazendo um doutorado com bolsa de estudos, tinha tempo e dinheiro suficientes para me dedicar ao hobby. Descobri os jogos de tabuleiro modernos, vindos principalmente da Alemanha, e entrei profundamente nesse mundo, a ponto de retomar estudos do idioma alemão, que eu havia abandonado, para ler as regras dos jogos no original. Comecei a fazer uma coleção dos jogos vencedores de um prêmio alemão anual de jogos de tabuleiro. Todo final de semana, reunia familiares e amigos em casa, formávamos três ou quatro mesas simultâneas e jogávamos desde a tarde de sábado até a madrugada do domingo. Escape perfeito. Durante a semana, havia novos jogos para pesquisar na internet, listas de discussão virtual para conversar e, quando chegava uma nova caixa dos Correios com dois ou três jogos, eu e minha então companheira não esperávamos pelo final de semana, colocávamos uma toalha sobre a cama e aprendíamos um novo jogo: Catan, Adel, Café Internacional...
Quatro anos depois, acabou o doutorado, acabou o casamento e quase acabaram-se os jogos. A morte parecia ser a melhor alternativa de escape, mas, de alguma forma, eu sobrevivi. E os jogos também. Não como protagonistas, mas como coadjuvantes. Hoje vejo com muito espanto a proporção que tomaram os jogos de tabuleiro modernos no Brasil: são sites, canais do Youtube, luderias, jogos nacionais... De vez em quando, dou uma espiada nesse mundo, mas não possuo as condições financeiras para escapar por essa via no momento.
Relendo o que escrevi até agora, percebendo quantos jogos e quantas situações vividas ficaram ainda por registrar, me impressiono com a força dessa forma de escape em minha vida. A forma lúdica. Talvez a mais pura das formas. A forma mais infantil. Mais ingênua. Mais inofensiva (não gosto de jogar apostado). Se eu fosse escapar agora, neste exato momento, por algumas horas, eu gostaria de escapar aprendendo a jogar "CV — O que aconteceria se...", um jogo em que, lançando e alocando dados, vamos acumulando cartas com experiências de vida, desde a infância até a velhice.
Mas é hora de voltar para este mundo. Ele me puxa da forma mais categórica: a fisiológica. Não há mais como escapar escrevendo, ouvindo música e sonhando com jogos de tabuleiro. Preciso ir ao banheiro. Volto outra hora, lembrando e contando como muitas vezes escapei deste mundo com os FILMES.
E você, caro leitor, o que usa para escapar deste mundo? Ou você gosta deste mundo e não tem vontade de escapar dele?
Comentários
Já pensou em criar um jogo, Eduardo?
Ah, e amei o comentário acima, da Lilu, lindo tb
Em devaneios de palavras com e sem imagens.
Em atividade física diária, sim, este é um escape diário.
Nas obras de arte de artistas diversos.
Por fim, escapo em boas xícaras de café.
Zoraya, já fiz algumas tentativas sem muito sucesso. :) Grato.
Gilbert, época boa demais! Quem sabe volta qualquer tempo desses... :)