O JARDIM MALDITO >> Zoraya Cesar
Combinamos, minha prima e eu, de nos isolarmos de tudo e de todos, num derradeiro e desesperado esforço para passarmos em nossas provas finais para a magistratura.
Foi assim que alugamos uma casa no cimo da serra, na qual chegamos depois de rodar por horas em uma estrada de terra meio barrenta e movediça. À medida em que nos aproximávamos do local, desapareciam as casas, os pastos, as plantações e as almas vivas, até que, nos últimos quilômetros, só havia matagal e sombras.
Chegamos nessa hora, a hora das sombras, quando o Sol recolhe apressadamente seus últimos raios, como se ameaçado estivesse a dar logo espaço à noite faminta.
Acendemos os faróis para enxergar o portão, de madeira leve e apodrecida. Ao empurrá-lo, minha prima escorregou, caiu de joelhos e xingou alto. Sua voz espraiou-se pelo ar parado, qual asas negras de corvo, e quebrou o silêncio de maneira tão abrupta, que me arrepiei toda.
Iluminada pelos faróis do carro, a casa assemelhava-se a uma velha de olhos vazados e boca escancarada, com suas janelas e porta pintadas de preto. Sua pintura estava descascada e os degraus do alpendre gemiam sob nossos pés. Tive vontade de sair correndo; minha prima, no entanto, não era chegada a frescuras, por isso, engoli minhas impressões e calei-me.
Entramos.
Meus medos bobos se desvaneceram. Por dentro, a casa era limpa e bem conservada. Cozinha e sala formavam uma peça única, na qual havia uma mesa grande o suficiente para nós duas estudarmos. No quarto, duas camas, banheiro e uma porta, que dava para a garagem. Deveras estranho, mas nos servia.
Arrumamos nossas coisas, comemos e fomos deitar, exaustas. Antes de dormir, olhei para fora: sob a luz baça da lua, duas estátuas - um anão e um querubim - se encaravam. Estavam distantes da janela, mas, ao vê-las, um mal-estar quase ancestral tomou conta de mim. Não dormi. Passei a noite ouvindo os profundos roncos de minha prima e ruídos vindos de fora que não soube identificar.
No dia seguinte, minha prima, mais disciplinada que um hussardo, mergulhou nos livros. Insone e irritadiça, não consegui estudar. Resolvi sair e queimar meus medos sob a luz do Sol.
Aquilo lá fora não merecia o nome de ‘jardim’. Era um terreno árido e abandonado, que mais se assemelhava a um cenário de guerras há muito lutadas, há muito perdidas. Troncos cortados e queimados estavam largados desordenadamente; monturos de objetos velhos e quebrados; um caramanchão aos pedaços, terra seca, infértil. Ruínas. Desolação. E as estátuas.
De pedra, ambas, e também sofridas pela exposição ao tempo – em seus corpos viam-se fraturas, rachaduras, pedaços perdidos. O querubim era tão soturno quanto aquelas figuras de cemitério: branco marmóreo, o olho que lhe faltava e a fenda em seus lábios davam-lhe um ar leporino e feroz. Levantava uma espada, cuja lâmina estava trincada. O anão em nada lembrava os da Branca de Neve; seu rosto contraía-se num esgar rancoroso e cruel. Em suas mãos, não um pote de ouro, mas um machado que, Deus me ajude, tinha uma mancha que parecia de sangue.
Não sei por que fiz o que fiz, mas – depois de muita labuta e suor, pois ela era pesada – virei a estátua do anão de lado, para que ficasse de frente para a casa. Pronto, pensei, brincando, agora vocês não vão mais brigar.
À noite, porém, ao ver, pela janela, o anão olhando em nossa direção, senti-me tão mal que quase vomitei, de pura angústia. Tive a vontade, mas não a coragem, de sair e virá-lo novamente. Minha prima, muito prática, nem tomou conhecimento de meus medos inexplicáveis e disse que eu deveria tomar um calmante.
Enquanto ela, como sempre, dormia mais pesadamente que um porco, eu permaneci acordada, os olhos esbugalhados. Tinha a íntima certeza que, se dormisse, algo horrível iria acontecer.
Dessa vez, distingui os ruídos lá fora: gritos abafados, pisadas fortes, entrechoques de materiais diversos, como metal, madeira, rocha. Passei a noite estática, mal respirava, que dirá levantar para ver o que estava acontecendo. Quando amanheceu, olhei pela janela e, Deus de Bondade, tanto o anão quanto o querubim estavam nitidamente mais perto da casa e eu devia estar ficando louca, pois poderia jurar que seus braços estavam em posições diferentes de quando vira as estátuas no dia anterior.
Contei tudo para minha prima, que sem tirar os olhos dos livros, disse para eu parar de bobagens e começar a estudar.
Aproveitei a luz do dia, e desvirei o anão (mais pesado que antes!), colocando-o de novo frente a frente com o querubim. Eles que se matassem, pensei. Quando terminei, percebi, juro, que eles me olhavam com ódio. Voltei para a casa e de lá não mais saí. Mecanicamente, sem pensar no porquê, arrumei nossas malas e as coloquei no carro, enquanto minha prima, concentradíssima, estudava.
Depois de duas noites sem dormir, o cansaço me venceu. Adormeci e sonhei com os ruídos da noite anterior, bem mais altos, próximos e vívidos. Comecei a me debater, assustada, sentindo solavancos tão fortes que acordei.
Era minha prima quem me sacudia, chorando e gritando que ‘eles’ já estavam chegando no alpendre... Os berros e canglores lá fora estavam tão altos, que não admira até ela ter acordado. O que foi a nossa sorte. Corremos para o carro. Antes de chegar ao portão, olhei pelo retrovisor. A casa estava às escuras, mas a luz das estrelas me permitiu ver a porta da frente arrombada e sombras dentro da casa. A estátua do querubim estava caída junto ao batente e a do anão tinha sumido. Minha prima chorava ao meu lado.
Passei direto pelo portão, quebrando sua madeira podre, e acelerei sem mais olhar para trás. Sabia, no meu íntimo, com toda a certeza, que, se continuasse olhando, jamais escaparíamos de lá.
Comentários
beijos.
http://umadblog.blogspot.com.br/2014/11/madcurioso-os-cavaleiros-alados-da.html