O BOMBOM SONHO DE VALSA DE IRINEIDE
>> Zoraya Cesar
Liberdade. Que estranha palavra, aquela, sussurrada pelos desvãos e frestas da casa, como um anátema, maldição, coisa do demo. Uma ilusão, que colocava as pessoas a se perderem pelo mundo, sem eira, à beira do precipício.
“Mulher com liberdade vira mulher à toa”, dizia o severo e sisudo pai de Irineide. A mãe, tão carinhosa, tão alegre e risonha, não gastava tempo com palavras ou sermões. Preferia brincar com a filha e escondia bombons Sonhos de Valsa para que Irineide os procurasse e depois os comessem, juntas, escondidas, para que o pai não desaprovasse a comilança e a bagunça. Era o momento mais feliz da vida da menina.
Com o tempo, as frequentes e acerbas brigas entre o casal foram minando a alegria da mãe, as brincadeiras, os risos e os bombons. Passava horas em frente à janela, triste, ensimesmada. Para Irineide, a mãe lhe parecia um frágil pássaro desesperado, engaiolado num espaço muitas vezes menor que seu próprio corpo.
Era tarde de outono, o vento soprava pela janela semi-aberta, soando como uma coruja sonolenta, u-uh-u, levando folhas e flores para dançar ao som de uma música inaudível. Irineide observava, encantada, aquele colorido e alegre bailar, quando a mãe entrou no quarto com um bombom Sonho de Valsa nas mãos. A criança comeu o bombom, o coração exultante, os olhos fixos na mãe, que desamassava delicadamente o celofane, enquanto pedia-lhe que jamais deixasse de procurar sonhos de valsa. A menina não entendeu, mas escutou.
Irineide nunca mais viu seu pequeno pássaro. A mãe, constantemente reprimida e infeliz, bateu asas, voou, levada pelo vento outonal.
O pai se vestiu de luto e amargor por anos, nunca mais se casou. Baniu da casa toda e qualquer lembrança da mulher e proibiu que pronunciassem seu nome. Dedicou-se à farmácia, da qual era dono, e a podar, sistemática e calculadamente, todo e qualquer devaneio por liberdade que Irineide pudesse ter. A menina, de personalidade dócil e serena, foi criada debaixo do medo da desobediência e de contrariar o pai, coitado, já tão sofrido. Fazia tudo para agradá-lo e diminuir-lhe a dor de ter sido abandonado sem explicações.
Assim que ela aprendeu a fazer contas, o pai a colocou como sua assistente na farmácia. E, quando percebeu que os hormônios da adolescência poderiam ameaçar o seu reinado, simulou uma doença que carecia de muitos e esmiuçados cuidados. Irineide não tinha tempo nem ânimo para se ocupar com nada que não fosse o negócio, a casa e os cuidados com o pai.
A vida continuou seu curso.
Alguns anos depois, cansado de bancar o doente, o pai engendrou outro golpe para manter a filha sob seu tacão. Convenceu-a a se casar com o sapateiro, um hipocondríaco que não saía da farmácia — por motivos óbvios. Irineide não sonhava com liberdade, nem sabia o que era isso, mas gostou da ideia de ter a própria casa, ser dona de seu tempo, voltar a estudar.
Casou-se, pois. E a vida continuou seguindo — como sempre o faz, até ser interrompida. O marido, assim como o pai, acreditava que mulher ocupada não pensa bobagens. E Irineide, ensinada desde sempre a ser submissa e obediente, jamais questionou os dois homens da casa. A liberdade levara sua mãe embora, não devia ser coisa boa mesmo.
Quem puxa aos seus não degenera, dizem. Irineide podia ser uma marionete nas mãos do pai e do marido, mas não nascera estúpida. Herdara inteligência e sensibilidade suficientes para perceber que havia algo errado em sua vida, muito errado.
O outono dourava a tarde lá fora. Irineide estava inquieta, incomodada por uma angústia indefinível e poderosa, que não cabia em seu peito. Batia com o corpo nas paredes, como se tivesse perdido a noção de espaço, tal qual um pássaro grande em uma gaiola pequena.
Resolveu faxinar o escritório do marido, aquele ser que não lhe dizia nada e a entediava de morte. Lá encontrou, camuflada embaixo de um móvel, uma pilha de revistas pornográficas, de viagens, carros, tudo o que o marido dizia abominar. Moralista hipócrita, pensou.
A súbita consciência de que havia vida além daquelas paredes, de que fora usada pelo pai e pelo marido por todos aqueles anos, abriu, no coração de Irineide, um abismo insuportável. Em seu quarto, pegou, escondida atrás do espelho, a embalagem daquele último bombom Sonho de Valsa que a mãe lhe dera. Amassou-a com as mãos e chorou, chorou, chorou. De ódio, pela vida perdida; de nojo, pelas noites de sexo sem amor; de raiva da mãe, que a abandonara nas mãos de um pai obtuso, egoísta e, tinha ela certeza, mentiroso; de sua própria passividade. Nesse momento ela compreendeu a atitude da mãe: às vezes, a fuga é a única saída.
O vento soprava pela janela, um som de coruja sonolenta, u-uh-u. Irineide teve ímpetos de sair porta afora e ser uma folha ao vento, sem rumo e sem sentido. Sua mãe pagara um preço alto pela liberdade. Teria valido a pena?
Arrumou uma mochila com poucas roupas e o essencial. Pegou todo o dinheiro que conseguiu, do pai, do marido e do caixa da farmácia. Deixou um bilhete simples: “Vou sumir no mundo, que nem a minha mãe. Não me procurem, que eu não volto. Adeus”.
E saiu ao encontro do vento, uma folha de outono, solta, dançante.
Na rodoviária, comprou uma passagem só de ida para o Nordeste. Viveria sem amarras invisíveis. Venderia peixe na praia. E bombons Sonhos de Valsa. Muitos sonhos de valsa.
Amigos, estou de férias, volto a publicar no dia 11 de setembro. Até lá!
Comentários
essa crônica continua? queria ver Irineide valsando seus doces sonhos...
beijos