MENINA DESCALÇA NO PÁTIO >> Carla Dias >>
A primeira vez que a viu, sentiu que sua vida começara a fazer sentido. Antes dela, tudo parecia meio sonso, uma longa espera em alguma antessala de casa desconhecida. Quando a escutou recitar aquele poema de autoria desconhecida, como se a ela pertencesse autoria não somente daquele poema, mas de todos os já escritos nessa vida, rendeu-se à constatação: para respirar, precisava dela por perto.
Tinha treze anos de idade na época. Ela participava da Feira de Artes da escola, recitando poema no pátio. Era menino quieto, de quietude que inquietava até aos inquietos de sua turma. Mas ele não se importava com isso, que tinha mais o que fazer do que dar crédito à sua incapacidade de ser como esperavam que ele fosse, como planejar a felicidade que conheceria em breve.
“Em breve” tornou-se um tempo longo e arrastado. Mas ele se deu conta, lá pelos vinte e poucos anos de idade, que paciência é a ciência de viver a vida com os pés na realidade. E a realidade proporcionara a ele uma vida distinta, digna de qualquer ser humano que trabalha e sustenta a si e aos seus. Os dele eram o irmão mais novo e a mãe, com os quais dividia uma casa confortável no subúrbio.
Para amansar a aridez do tempo que passa sem que ele descubra quem é ou onde ela está, formou-se arquiteto. Projetou prédios para ricos e para pobres, padaria, açougue, boate, escolas, praças e até um museu. Foi na inauguração desse museu que ele conheceu um pintor apaixonado por Salvador Dalí. Apaixonou-se ele mesmo pelas obras do pintor catalão, fascinando-se pelo surrealismo.
Abarcado pelo tempo anestesiante, dividiu seu escritório em dois ambientes. Em um ele atendia seus clientes como arquiteto. Em outro, mergulhava no surrealismo e arriscava ele mesmo a criar pinturas, enquanto seus pensamentos se enrolavam ao poema recitado, à menina descalça no pátio da escola.
Apesar de saber que jamais se tornaria um artista como Dalí, acabou se tornando um dos pintores mais prestigiados de seu estado, para então ganhar o país. Assim, toda vez que terminava um trabalho como arquiteto, o cliente acabava por solicitar uma ou mais de suas obras para colocar no espaço por ele criado.
Apesar do sucesso em ambas as áreas, havia quem o questionasse por não entender como um homem formado em arquitetura, profundo conhecedor da métrica e da proporção, bandeou-se para o desdém do surrealismo. Para ele se tratava de comportamento repetitivo, porque ainda que fosse questionamento vindo de profissionais reconhecidamente talentosos, ele só conseguia se lembrar de seus colegas de escola, de quando era menino quieto, de quietude que inquietava até aos inquietos. Ele continua a não se importar com isso, que tem mais o que fazer do que podar sua capacidade de ser aqueles que lhe cabem, como arquiteto e pintor surrealista.
E cozinheiro... Definitivamente, ele poderia abrir um restaurante. Mas durante esse tempo de aprendizado sobre a arte de cozinhar, só pensava em como seria o dia em que ele cozinharia para ela, já uma mulher, ali mesmo, na cozinha que ele projetou. Pensa em como ressoaria gargalhada dela pela casa, ou se ela caminharia descalça pelo jardim.
O irmão se casou e mudou-se para o estrangeiro. A mãe foi junto com ele, porque era desejo dela, desde mocinha, experimentar outra cultura. Ele ficou: casa que projetou com muitos cômodos, agora vazios, raramente visitados pela presença dele. Há dias em que se arrasta pela cozinha, quarto e sala.
Casa vazia é coisa difícil com a qual ele não sabe se aprenderá a lidar.
O tempo que passou não lhe rendeu bons frutos pessoais. Viveu dramas e comédias com suas mulheres. Houve quem lhe amasse pela fama, pelo dinheiro, na tentativa de conhecê-lo. Houve quem não lhe amasse, mas fez de conta que sim por conveniência. Houve quem lhe odiasse ao dizer “eu te amo”.
A paciência que ele cultivara, durante quase toda sua vida, dissipara-se. A paixão pela arquitetura, inspirada pela casa que sonhara em construir no quintal da sua casa da infância, hoje é apenas uma lembrança embaçada. Aposentou-se com um currículo profissional impecável. As pessoas disputam para adquirir um dos imóveis assinados por ele, que já avisou que encerrou sua carreira como arquiteto, causando furor entre as imobiliárias interessadas em colecionar suas obras arquitetônicas para vender como se fossem diamantes gigantes.
Seu plano era se dedicar somente à pintura. Porém, parecia ter se esgotado sua capacidade de dançar pincéis sobre telas; de misturar cores e formas. Passava horas por dia sentado de frente à tela em branco, bebendo seu uísque e comendo salgadinho direto do pacote. Lembrando-se daquele dia, de como o sol iluminava o pátio, de vê-la caminhando, cadenciadamente, até o centro dele e erguer os braços, as mangas do vestido branco e leve escorregando neles, antes de ela soltar a voz.
A voz dela era delicada, mas não no dizer palavra. O poema era irreversivelmente dolente, e ele tem certeza de que aquelas crianças não entenderam nada. Ele mesmo entendeu pouco, apesar da fascinação. Mas conseguiu cópia do tal com a professora de Língua Portuguesa da sala dela.
Com o passar dos anos, compreendeu o que ela proferiu por meio do poema, com tamanha urgência. Viveu muito do que no poema eram mágoas e desapontamentos. Tentou, mas nunca conseguiu descobrir a autoria do poema. Hoje, ele acredita que foi ela mesma quem o escreveu. Que ela sentiu certo prazer em dizer “poema sem autoria”, como quem dispensa a própria história para tentar começar uma nova, sem tantos abismos e dolências.
Teve uma longa vida. Uma vida dedicada à lembrança da menina do pátio da escola. O nome dela ele nunca pronunciou, mas sempre reverberou em sua memória. Pouco antes de sua morte, pintou um quadro nada surreal. “Menina Descalça no Pátio” mostrava aquela que lhe embalara o espírito e a imaginação durante toda sua vida. Ele finalmente trouxera a menina para a realidade. O quadro fez um grande sucesso, que era de beleza indiscutível a forma como o pintor retratou o que, ninguém sabia, era uma das cenas de sua biografia. Ele ficou exposto em um espaço especial no museu que ele, o pintor, projetou como ele, o arquiteto.
O segurança avisa que ela não pode tocá-lo. Mas como não? É uma parte da vida dela ilustrada nele. A mulher está acompanhada da neta, que tenta acalmá-la e a afasta do quadro. Acalmar para quê? Acalmou-se a vida inteira e viveu raso, tão diferente daquele momento, no pátio da escola, quando declamou o poema mais sincero que escrevera na sua vida de poeta mediana. Aquele que enterrou junto com o desejo de, assim como no poema, “deixar de carecer de pertencer ao mundo, para então pertencer a si mesma.”
Reconheceu-se naquele dia, naquele momento. Uma alegria tímida lhe invadiu os sentidos. Inspirou-se para um novo poema, desta vez, o último.
Às vezes, uma única vida não nos basta.
Imagem: Trilogy of the Desert. Oasis © Salvador Dalí
carladias.com
Comentários
Zoraya... Ah, gentil como sempre :)