A SAGA DE SANDY >> André Ferrer
O tipo de pensamento
que só acontece de madrugada. E se o cronista vem de um sono intranquilo diante
da TV, o corpo magoado pelas duras corcovas da poltrona, o tal pensamento
ocorrerá. No entanto, um pouco antes — graças à música inconfundível —,
descobre-se que se assistirá ao filme "Nos tempos da brilhantina" ("Grease") pela
enésima vez. Inevitavelmente, aquele pensamento: sim, o vaivém da moda não tem
nada de espontâneo.
Aliás, nunca teve. No
seu movimento pendular, a moda oculta um verdadeiro universo de intenções.
Grease é um filme
dirigido à juventude dos anos de 1970, mas que retrata a geração anterior, dos
pais, aqueles que eram jovens algumas décadas antes, em plena transição dos
1950 para os 1960. A história tem como eixo a educação sentimental de uma jovem,
Sandy, o que perpassa, rapidamente, a inocência dos anos dourados e alcança os
vestíbulos dos anos de 1980 e 90 quando, efetivamente, a mulherada trocou a
espera na orla da pista de dança pelo ato assustador de “tirar para dançar”.
Como revival dos festivos e puros anos pós-guerras, Grease encanta os mais
velhos e, assim, edulcora o resultado da revolução dos costumes. A beatitude de
Sandy é um engodo para o núcleo familiar. A donzela é uma mola encolhida. Ela
parece condenada a uma eterna matinê rockabilly, mas ensaia tacitamente o
atualíssimo “ataque da cachorra louca”.
Uma vez mais, a saga de
Sandy passa diante dos meus olhos. Desde o início do filme, lá está ela: pronta
para se lançar nos embalos de sábado à noite, nos nightclubs nova-iorquinos,
na boemia new wave de Londres, enfim, nas raves anfetamínicas de Ibiza.
Enquanto apresenta uma heroína ingênua, que se revelará uma Fênix Negra nas
cenas finais, Grease tem elementos que agradam os donos da independência
financeira, isto é, os pais, aqueles que liberam a criançada para o cinema e
até pagam a pipoca, o refrigerante e o hot dog.
A moda nunca retrocede.
A moda é um fio maleável, que se dobra sobre si mesmo para tocar, lá atrás, o
que interessa aqui na frente. Se o controle dos iguais é sempre mais fácil do
que o controle dos diferentes, a moda é a serpente que paralisa e nivela as
massas com a sua dança de sobreposições.
Em Grease, a ilusão dos
“velhos tempos que voltaram” uniformiza os pais e os filhos em prol de um
produto. A guerra de gerações ganha, então, uma zona neutra em que a trégua
beneficia uma grande indústria cultural. Na bandeira branca, pode-se ler que a
moda é circular; de tempos em tempos, ela traz de volta o que houve de bom. Mas
a história não é bem assim. O refluxo da moda é tão deliberado quanto uma onda
que se quebra numa daquelas praias de parque aquático, artificialmente animada
pelo emprego de bombas.
O pêndulo da moda é
irmão dos fantoches. Daí o kitsch. Os Girassóis de Van Gogh a preços populares.
A miniatura da Torre Eiffel, como souvenir, para quem visita Foz do Iguaçu ou
Aparecida do Norte. A ideologia é feita para muitos enquanto a riqueza
material, desde que o mundo é mundo, é para poucos.
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