O CASACO - PARTE II >> Zoraya Cesar
Aline vestiu-se discretamente, como sempre. Vestido, meias, sapatos, tudo preto. Está parecendo um urubu, disse a mãe, gentil, como sempre.
O casaco. Ela o admirou longamente, como era bonito, um amarelo tão vistoso, brilhante, extravagante, até agora não entendia como tivera coragem de comprá-lo. Assim que chegou à rua, vestiu-o.
E, novamente, daquele momento até o final na noite, a Aline tímida de doer, explorada, amassada, inexpressiva passou a ser mera espectadora do que uma outra Aline fazia enquanto ocupava seu corpo. Aline-do-casaco-amarelo parecia muito à vontade com o mundo. Parou num bar, entornou um copo de vodca e depois pegou um táxi. Desceu no local da festa, um bar-restaurante badalado que a mídia propagava ser ideal para os modernos e antenados.
O ambiente, lusco-fusco, estilo decadente-chic, estava lotado. Isso vai ser um saco, pensou. Nenhum de seus colegas a reconheceu. Aline viu Cristiana Rosely, que, bêbada, ainda era mais vulgar que sóbria. Viu também o chefe, e não entendeu o que a outra Aline achava de tão especial naquele mauricinho mal vestido com calça de tergal preta e camisa social branca. Coisa mais brega. Mas, enfim, gosto não se discute.
Aline se aproximou dele, insinuante, manemolente, olhos verdes derramados. E um casaco amarelo que traduzia disposição para sexo selvagem — pelo menos foi o que o chefe pensou quando aquela verdadeira Maeve o beijou na boca e o empurrou para o canto mais escuro daquele botequim de luxo duvidoso. (O que eles fizeram não posso contar, esse é um blog familiar.) Depois, simplesmente, Aline o largou lá, embasbacado, sem jamais associar aquela deusa à sua tímida e sensaborona funcionária.
Aline foi ao banheiro retocar a maquiagem, estava na hora de ir embora daquele antro de chatos. Já tinha feito um favorzinho à dona do corpo, agora ia tratar de se divertir.
Nesse momento entra Cristiane Rosely, disposta a tirar satisfações com a mulherzinha de casaco amarelo escandaloso que ousara pegar seu homem, mas não deu nem para abrir a boca. Aline deu-lhe dois tapas fortes na cara, desconcertando-a, e imobilizou-a com uma chave de braço que a deixou sem fôlego, tal a dor. Ato contínuo, com uma destreza impressionante, abriu a bolsa de Cristiana Rosely, pegou o batom e pintou-lhe toda a cara, descabelou-a, tirou-lhe os sapatos e jogou-os, junto com a bolsa e todo seu conteúdo na privada. Ainda torcendo fortemente o braço da oponente, empurrou-a de volta para o meio do salão. Cristiane Rosely virou a piada da festa, a piada do ano, toda amarfanhada, descalça, pintada como um palhaço, choraminguenta e tonta. Ninguém ria mais que o chefe.
Aline seguiu pela noite, satisfeita por ter prestado mais um favor à outra. Entrou em bares e lugares que a pacata Aline sem casaco jamais suspeitara existir, mas percebia, de dentro de seu corpo, que a persona do casaco amarelo estava em seu habitat natural. Bebeu álcool suficiente para derrubar um cavalo, sem que isso a afetasse um mililitro sequer. Foi cumprimentada como velha conhecida por vários barmen e outros frequentadores, rivetheads, punks, metaleiros, nada lhe parecia estranho. Beijou homens de tatuagens enormes e assustadoras. Fumou do cigarro de travestis bem vestidos. Dançou em cima da mesa de bilhar, tirou a calcinha e rifou-a entre Hell’s Angels, e ninguém, ninguém mesmo, ousou fazer-lhe qualquer mal ou faltar-lhe com o respeito. Voltou para casa de carona com um homem esquisito que teria feito a Aline sem casaco sair correndo, numa Fat Boy Special em que a Aline sem casaco jamais teria coragem de subir.
A noite acabara. Assim que chegou, a mãe lhe perguntou que vadiagem era aquela. Aline apertou o braço da velha e sussurrou em seu ouvido coisas que nunca saberemos ao certo o que eram. Mas sabemos de certo que a outra Aline nunca mais foi importunada ou explorada pela mãe ou pela irmã.
Tirou o casaco, guardou-o cuidadosamente e dormiu.
Acordou achando que tudo fora um sonho vivíssimo e muito doido, mas apenas isso, um sonho. No entanto, não conseguiu encontrar a calcinha. Seu cabelo cheirava a cigarro. Sua boca estava intumescida. Dentro da bolsa havia uma faca Jim Bowie que ela nunca vira, e o celular tocava insistentemente.
Será que dera seu número a um daqueles estranhos? Àquele tal de Jim Bowie? Não atendeu. Mas a pessoa deixou um recado:
Aline? Aqui é Lenora, dona da loja onde você comprou o casaco. Espero que esteja tudo bem com você. Precisamos conversar. Esse casaco tem estranhas propriedades, nem deveria ter sido exposto à venda. Venha me procurar. Pode ser caso de vida ou morte.
Aline não entendeu muito bem, mas não podia duvidar do que vivera. O casaco ou despertava nela uma personalidade selvagem ou permitia a incorporação de alguma entidade. Não fazia diferença, o que importava era que, toda vez que colocava o casaco não se pertencia mais, passava a ser espectadora de si mesma.
Ao passar pela sala, a mãe e a irmã abaixaram a cabeça — não a humilharam, não lhe pediram dinheiro, não nada. Apenas lhe deram bom dia, baixinho e respeitosamente.
Aline parou em frente à loja, agarrada ao casaco, indecisa, lembrando de todos os acontecimentos ferozes das últimas 24 horas e de todos os acontecimentos insossos dos seus últimos 24 anos de uma vida sem horizontes.
Podia ser caso de vida ou morte. Devolveria o casaco?
(Maeve é uma deusa irlandesa, símbolo da sexualidade plena e impetuosa, da mulher que escolhia seus parceiros sem cair na promiscuidade.)
(Aline, na sua inocência, pensou que “Jim Bowie” era o nome do
dono da faca. Na verdade, essa é uma típica e mítica marca de faca
norte-americana, que traz o nome de seu mais famoso portador. Sabe Deus onde e
como Aline arranjou isso àquela noite.)
Comentários
Esse casaco deve valer uma fortuna!
Cecilia
Zoraya vc está se superando!!!! Estou ansiosíssima pela parte 3!
Devolver o casaco? Nãaãããõoo! Eu o manteria bem guardadinho no meu armário hehehe. Bjão da Cristina Maria.