UM VELHO ESCRITOR >> Sergio Geia
“Um velho escritor” ganhou o primeiro lugar no concurso interno de contos da Academia Taubateana de Letras, em 2018, e está presente no livro “Letras Escolhidas II.” Num brainstorming que aconteceu numa tarde na Academia, o acadêmico Celso Brum disparou: “O que acontece depois?”. Assim, “Um velho escritor” tem por mote “o que acontece depois?”. Espero que vocês gostem.
Ele sente o caos. Sente só, não; ele vê. Coisas miúdas, pretas, brancas, cinzas, papel, pano, ferro, plástico, vidro. Disparam um rock barulhento sobre a fórmica branca. São pequenas coisas, grandes coisas, únicas, que se misturam num algo vago e imperfeito, perdendo nessa mistura cada uma a sua unicidade, numa grande massa amorfa, nuvem pesada, ou várias nuvens pesadas, que se tornam problema, que se tornam tempestade, uma grande ameaça à serenidade de que tanto necessita.
Senta. Respira fundo. Tenta encontrar uma faixa sublime que o carregue. A camada do caos o atordoa e o aborrece. Precisa fugir dela. Precisa saltar camadas. Olha tudo com enorme cansaço. Planeja há dias desanuviar o ambiente. Torná-lo limpo, higiênico, uma sala ou um quarto desses ricaços, cada coisa no seu lugar, nenhum excesso, tudo organizado e harmônico. A mesa, no entanto, é o lugar que tem no acanhado apartamento para receber coisas — as suas coisas —, e, embora sinta que realmente precise arrumar — uma mínima organização —, só lhe interessa no momento a frase que há dias o atormenta, o consome, o paralisa: “O que acontece depois?”.
Caça, no meio das nuvens pesadas, a fugidia companhia de sempre. Abraça-a com carinho, como há muito tempo não abraça uma mulher. Depois, pluga o cabo grosso na tomada, aperta o botão, espera o necessário tempo do recomeço. Levanta a pequena tela Led de 15 polegadas e tenta começar. A página branca o intimida, mas bem no alto, no centro do alto, digita em negrito, Times New Roman, corpo 12, aquilo que espera ver se transformar num conto minimamente bem escrito e apropriado: “O que acontece depois?”.
Mas ele não sabe. Não sabe o que acontece depois. Na verdade, não tem a mínima ideia. Ocorre que não acontece nada, pois nada lhe vem à mente. Na página inicial de seu conto, o que acontece depois é simplesmente uma página em branco, um branco doído.
“O que acontece depois?”, ele insiste na pergunta. “Mas por que depois, e não antes?”, é a resposta, a primeira resposta que vem. Pelo menos teria algo a dizer, afinal, o antes vem antes; e se já está no depois (e esse depois não vale porque se diluiu no agora), o antes já aconteceu. E se aconteceu, basta rememorá-lo, traduzi-lo, dar à luz, fazê-lo criar-se, passar pelo funil da sensibilidade, dar vida. O antes é vida real. Depois, é ficção. Ora, ora, por que a pessoas complicam tanto? Não seria mais fácil: “O que acontece antes?”.
Se o tema fosse “O que acontece antes?”, acha que escreveria assim: “Põe na vitrola o disco do João Gilberto, Live at the 19th Montreaux Jazz Festival. O álbum é um concerto gravado em 18/07/1985, durante a apresentação de João no festival de Montreaux. O chiado, reflexo do contato da agulha com o vinil, avisa que a música vai começar. Ele tem nas mãos o copo com duas pedras de gelo e uma dose de uísque. Senta-se, e sente a voz de João o acarinhando na noite fria: ‘Tristeza não tem fim, felicidade sim. A felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar, voa tão leve, mas tem a vida breve, precisa que haja vento sem parar.’ Ele voa. Fecha os olhos. Deixa-se conduzir, como a dama no salão. O homem a segura, firme a segura, e com as mãos na cintura dela, baila sem parar, harmonia perfeita, delicadeza suave nos gestos, sempre ele ditando os passos, ela voando como a pluma. ‘A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor, brilha tranquila, depois de leve oscila, e cai como uma lágrima de amor...’ Sorve o uísque, sorve a canção. A sensação é boa. Então ela aparece, como um sonho ela aparece, sorriso de ninfa, gestos de ninfa, perfume de ninfa; o sol se desvia das montanhas até sumir. Abre os olhos. Pega a capa do disco e leva até às narinas, como se dela ainda pudesse absorver o perfume delicado.”
Mas não adianta, o antes não importa, importa o depois, e ele apaga tudo. Olha pra mesa entulhada, bugigangas, papéis, documentos, livros, cabos de celular, copo vazio, um oceano de coisas, último lugar para encontrar um lampejo de inspiração. E então, num gesto bruto, ele fecha a tela do computador.
Levanta-se cansado — a idade começa a pesar —, vai até a cozinha, à geladeira, e um último ovo é o que tem para o jantar. O pão é de ontem. O sanduíche não é lá grande coisa. Pega no armário o uísque. Toca a garrafa, chega até a pensar num beijo, mas acha o gesto de uma estupidez absurda. Abre. Leva-a até o nariz. O aroma é bom. Como uma flecha, o pensamento dá a primeira estocada: “É esse o seu depois, meu caro”. De pronto, ele repele o pensamento atrevido. Mas não demora muito, e recebe uma segunda estocada: “Por que me repele? Sentimento de autopiedade agora, no fim da vida?” Ele o repele de novo. Acha o depois medonho e pobre. E o que vão pensar? Que sua vida é medonha e pobre? Quer algo mais sublime, talvez como a primavera que chega bonita, molhada...
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O escritor e a busca por ferramentas para vencer a página em branco: o que vem depois, o que vem antes, quem fez o quê, quando e onde? E a nossa luta do bem contra o mal.