AMADOR >> Carla Dias


Era redator amador, domiciliado de uma espelunca famosa, que descolava uns extras como psicógrafo. Sorria maliciosamente ao mencionar elegâncias, que era para não cair na conversa sedutora dos oráculos. Era vizinho de quarto ruindo de ciganas leitoras de mãos. Esbarrava em líderes religiosos citadores de versículos às quartas, dia de disputar com seus vizinhos o kit sabonete, punhado de arroz e jornais de antes de anteontem.

Seu endereço comercial vivia na sua condição residencial, apontado em aplicativos diversos como código postal de dar medo e afastar gente correta. Ganhava uns trocados às sextas, quando psicografava umas cartas de amor para as moças e moços que faziam da noite um eterno baile, dançando em pistas e se roçando em lençóis imundos, nos quais os asseados sujeitos visitantes não se importavam em se embrenhar. Não quando precisavam libertar aquele grito proibido pela falta de espaço nas suas casas de cinco suítes e prazeres comedidos.

Desenferrujar os ossos é o que faz uma vez ao mês, caminhando pelo parque que não vê passantes há um bom tempo. Gosta da solidão que colhe ali, durante a sua caminhada de exercício profundo dos músculos das pernas e da memória.

Detesta se lembrar, mas teme que, se não exercitar a memória, dia desses esquecerá como chegar ao seu destino.

Conheceu um atirador de facas que trabalhava na avenida paralela à rua do seu prédio cambaleante. Seu olhar se permitiu enganar por um tempo com as lâminas brilhando no ar, mas acabou se perdendo na beleza dos gestos da assistente de profissional nem tão bom de mira. A cada vez que assistia ao espetáculo do intrépido atirador de facas, despedia-se secretamente da assistente. Se ela morresse de esfaqueamento culposo, que partisse com o acanhado amor dele de companhia. Às vezes, sentia-se mal por desviar a atenção do seu benquerer e entregar-se totalmente ao desejo pela maçã que a senhorita de ombros caídos e feição exuberante equilibrava sobre a cabeça.

Imaginava-se mordendo aquela maçã, bem devagar. Mastigando-a, bem devagar. Fazendo com que ela durasse um mês inteiro dentro da sua boca.

Houve esse dia em que psicografou para um senhor muito rico que morava em uma casa que tinha porta com fechadura. Ele ofereceu um cigarro, encostou-se ao portão e parecia ator de cinema enquanto contava um causo de causa verdadeira. A história deixou o redator tão malcontente, que ele se afastou do amor e redigiu o epitáfio do senhor. A cara do protagonista fechou com o tempo, a sua língua disparou xingamentos e saliva, a plateia se reuniu, gritando prazeres que não podiam revelar aos meros transeuntes.

Naquele dia, o redator quase teve de encarar os espíritos pessoalmente e pagar a conta do péssimo psicógrafo que se tornara. Negociou bravamente com os do além e pagou com cinco dentes expelidos da boca como foguetes sendo lançados.

Facilmente saciável, sempre que a oportunidade aparece, troca um pecado por uma lata de cerveja morna. Quando o líquido desce pela sua garganta, sente como se a vida tirasse o pó do seu paladar e apresentasse a ele um sabor que não faz parte da sua rotina.

Uma benzedeira se mudou de porta com ele. Ela tinha os cabelos longos, espalhafatosos de banho uma vez por semana. Ela beijou sua boca e depois disse amém. Os espíritos que o ajudam na profissão de redator amador psicógrafo se arrepiaram. Ela era a criatura mais inteligente que já conhecera e ensinou a ele umas palavras difíceis. Os espíritos gostaram, o redator também.

Sentiu náusea de tanta tristeza, vomitou desespero ao vitimar-se de dor. Houve noite de sentir os olhos inchados de infelicidade chorada. Parecia que estavam prontos para escapar da sua cara.

Sabia como funcionava, já tinha psicografado muito a respeito e chegado perto de cometer o infortúnio. Mas olhou direto para o desejo, relaxou e se entregou aos caprichos do esquecimento.

A moça se mudou para o quarto dele e foram felizes por quinze dias, dezessete horas e trinta e dois minutos. Até ela declarar que precisava de mais espaço para ser quem era e vocalizar suas benzeduras, e se mudou para o apartamento do andar de baixo, onde vivia um homem muito rico, dono de dois cobertores e uma garrafa térmica.

Eles foram felizes durante um quase para sempre. 

Quase para sempre é uma eternidade desejada por ele. O redator psicógrafo agora vive entre palavras perdidas e espírito envergado. Sente falta do perfume exalando da pele dela: sabão em pó de banho, pagamento por serviços prestados na limpeza dos banheiros da lanchonete do outro lado da rua.

Os espíritos amadores abandonaram o redator psicógrafo amador, quiseram mais nada com aquele ser desorientado. Era um tal de psicografar o que nele mais doía do que entregar a mensagem ao destinatário.

AMADOR | KLEBER ALBUQUERQUE com participação de ÉLIO CAMALLE
Canção composta por Élio Camalle e Rafael Altério




Imagem de 愚木混株 Cdd20 por Pixabay

carladias.com



Comentários

Carla, você também é uma psicógrafa, a minha favorita: sabe escrever com beleza e gentileza a alma da gente.
Carla Dias disse…
Eduardo, que alegria saber que você anda lendo nossos textos. Que bom vê-lo por aqui novamente.
Obrigada pela leitura e pelo carinho de sempre. Beijo.
branco disse…
as vezes o eterno dura exatamente"... e foram felizes por quinze dias, dezessete horas e trinta e dois minutos." mas o que você escreve, minha cara, esse achados que não se mostram à qualquer pessoa, ficam por muito mais tempo, alguma coisa como cheiro de terra em um dia feliz.
Zoraya Cesar disse…
CARLA DIAS!!!!!! Meu Deus, que texto PRIMOROSO! Meu Deus...
Carla Dias disse…
Branco, obrigada pelo tempo dedicado às minhas feituras literárias.

Zoraya, grata, assim, de gratidão aprofundada.

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