A DESVIDA DA SRA. GRUÑON - CENAS DA NOITE >> Zoraya Cesar
Ela tomou o mingau de aveia, colocou o chocolate quente na garrafa térmica e alguns biscoitos na sacola. Trocou a ração e a água do gato. Vestiu o casaco e verificou se o xale, as meias e as luvas já estavam dentro da bolsa – suas juntas reclamavam muito se ela não estivesse bem agasalhada. Ah, as revistas! Suas preciosas revistas sobre celebridades. Por último, e bastante contrariada, desligou a televisão. Que maçada ter de sair bem no meio da novela!
Desceu manquitolando pelas escadas (maldito joanete!) e andou à pé os oito quarteirões - não era tão perto assim, mas preferia economizar o dinheiro do ônibus. Não pegava aquelas coisas imundas e perigosas, não senhor, esses motoristas de hoje querem matar todo mundo.
Seus pensamentos resmungavam. Velhice, artrose, emprego desinteressante (mas que era uma sorte ter um emprego, ah, isso era!), vida chata e sensaborona, nunca tinha o que contar às vizinhas. Passou por bares lotados, lojas fechando e gentes indo, vindo, ficando. Um rapazinho de cabelo rosa resgatou um gatinho que miava desesperadamente debaixo de um carro, abraçando-o como à própria vida. Um homem conversava com o copo de cerveja, sozinho, numa mesa de bar. Uma jovem passou gritando com o namorado ‘seu corno desgraçado, tomara que morra’… A Sra. Gruñón nada viu. Caminhava concentrada em lamúrias o mais rápido que suas articulações e carnes roliças permitiam.
A placa dizia: Club de Música e Conversê – para dançar e beber. Uma semi-espelunca brega e decadente, com ares de grandiosidade e luxo. Um bar, um pequeno palco e várias mesas se distribuíam pelo grande salão de assoalho arranhado e paredes cobertas de veludo vermelho, no qual uma antiga infiltração deixara um permanente cheiro de mofo, disfarçado pelo odor dos cigarros, perfumes baratos, suores abundantes. Ali, homens – e também mulheres, que estamos no século XXI – podiam apreciar a apresentação de drags embaciadas, cantores de voz gasta, mágicos cujo maior truque era a sobrevivência, e alugar parceiros para dançar, beber, conversar e, eventualmente, fazer sexo.
O gerente achava que a presença de uma velha senhora, sisuda e discreta, dava uma certa aura de respeitabilidade ao negócio. Acreditava, também, que esse ato de bondade lhe garantiria um lugar no céu, a compensar os pequenos – e nem tão pequenos – crimes que cometia.
No início da noite, a Sra. Gruñon ajudava artistas, dançarinos e garçonetes a se aprontarem para outra longa noite de suas vidas, que parecia nunca amanhecer. Os preparativos começavam em silêncio, cada um ensimesmado em seus próprios problemas, pré-exaustos pela obrigação de parecerem glamorosos, sequiosos por agradar, atender, entreter. Porém, a necessidade de receber calor humano dos seus companheiros de barco acabava por suplantar o desânimo e todos começavam a falar. Uma piada, um caso escandaloso, um segredo de alcova. E de repente tudo era festa, alegria, congraçamento. Aos poucos, saíam para o salão, ganhar a vida, vencer o fracasso.
A Sra. Gruñon – que nunca conversava ou dava intimidade a ninguém – deixava o camarim pronto para as próximas trocas de roupa, retoques de maquiagem, conversas, choros, suspiros. Então tomava a primeira xícara de chocolate e comia um biscoito, a folhear suas revistas e a suspirar de satisfação. Durante a madrugada era um entra e sai do pessoal da casa. Ela escutava fragmentos das conversas com uma atenção flutuante e descontente. Que lhe importavam aquelas conversas e aquelas vidas irreais?
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- Dayse, você viu o sujeito gordo e sebento que me chamou pra dançar? Pelo amor de Deus passa um pano com álcool nas minhas costas, o suor dele grudou na minha pele.
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- Carlota, acho que engravidei. Estou desesperada, preciso abortar já, não posso perder esse emprego.
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- Se você me deixar eu me mato, me mato na frente da sua casa, na frente dos seus filhos – soluçava o travesti ao celular, borrando a maquiagem. Uma garçonete entrou logo depois, abraçou-o, desligou o telefone e deu-lhe uma dose de uísque com cachaça. Ajudou-o a se recompor e a voltar para o salão, para o dinheiro, para os clientes. O amor e o desespero ficam para depois do amanhecer.
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- Aquela vagabunda não quis me dar dinheiro, preciso de roupas novas, como vou chamar a atenção das velhas vestindo essa roupa cafona? Tô te dizendo, até o final da noite vou encher Estela de porrada - dizia o pálido efebo de feições suaves e angelicais ao amigo, igualmente jovem na aparência quanto velho e corrupto na essência. Estela já conhecera a veracidade daquele discurso.
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Duas dançarinas entraram rindo muito de um cliente que tinha dois pés esquerdos e mancos, que tropeçava pelo salão. As gorjetas estavam boas aquela noite, uma poderia quitar uma dívida, a outra compraria um presente para o afilhado. Arrumaram-se, passaram mais um pouco daquele perfume barato e amadeirado de patchouli pretensamente sensual e voltaram, animadas. Dançar cura muitas feridas.
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A drag negra e alta entrou, sentou-se em frente ao espelho, tirando a maquiagem, lenta e vagarosamente, como se o ato fosse doloroso. Era muito bonita e vistosa. Mas, à medida em que se despia da fantasia, entendia-se o porquê da hesitação. Era um homem de meia-idade, a pele enrugando ao lado dos olhos empapuçados, abatido, cansado de sorrir, amedrontado com a idade que, enfim, chegara a seu corpo, e de onde não mais sairia.
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O dia amanheceu. O salão fechou. Dançarinos e dançarinas, garçonetes e garçons, artistas, todos se despiram da noite e foram para suas casas, esconderijos, vagas de quarto, pensões de quinta categoria. O camarim, vazio, um cemitério de roupas espalhadas, maquiagem, plumas, bijuterias, brilhos foscos e paetês quebrados.
A Sra. Gruñon deixava tudo arrumado, tomava a última xícara de chocolate com o último biscoito, e ia embora, sem nunca se dar conta dos recortes de vida que presenciava todas as noites. Só queria sossego para desfrutar de seu chocolate com biscoito e ler suas revistas cheias de celebridades que casavam, separavam, traíam, formavam opiniões, participavam de reality shows e novelas.
Seu porto seguro contra o tédio das noites de trabalho, essas revistas sim, davam o que conversar com as vizinhas, falavam de gente de verdade.
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Essa história foi inspirada por um conto que li há anos, no livro Contos norte-americanos, os clássicos, sob a coordenação de Vinícius de Moraes e apresentação de Orígenes Lessa, da Ediouro. Se alguém tiver esse livro, poderia me dar o índice? Esqueci o nome do conto e da autora, mas se os vir, reconhecerei. Obrigada!
Comentários
- “A desvida da Sra. Gruñon – Cenas da noite”, de Zoraya Cesar.
Nada além disso é necessário. Tudo começa em sua obra.
A autora desse conto é que tem que procurar pelo seu, que é definitivo.
E agora é a minha vez de te pedir uma referência. Essas revistas que a Sra. Gruñon lia devem ser espetaculares, a ponto de fazê-la indiferente a tudo o que a cercava. Tem os dados dessas publicações?
de uma maneira muito sutil e bela você acrescenta "...enqto tomamos chocolate, comemos biscoitos e folheamos revistas".
melhor que excelente!
Que riqueza esses personagens apenas citados!
lord white - nerecer citação sua já é a glória
Aninha - para certas pessoa, nenhuma grama será tão verde qto a sua própria. Ah, vc me chamou de sensível, né, Poetisa?
Albir - comentário digno de um Dom, muito obrigada, Dom Albir!
Já no segundo encontro a primeira pérola: manquitolando. E tbm os primeiros defeitos do caráter: a avareza e a desconfiança.
Ai no terceiro, fico pensando que tipo de vida mais sem graça essa pessoa teria, até surgir um rapazinho de cabelo rosa e eu entender que ela se concentrava em lamúrias...
O nome do local é muito bom - vc é muito boa com nomes, sabe disso. As descrições continuam precisas e com certeza semi-espelunca é uma coisa da qual possivelmente me apoderarei em futuro próximo. Ah, palmas para cantores de voz gasta e paredes de veludo vermelho - veludo vermelho numa parede já é uma coisa que por si só me deixa com muita gastura.
O quinto paragrafo é curtinho, mas a exposição da sovinice e da calhordice humana ficou muito boa - só não sei porque li "a gerente" umas quatro vezes, ao invés de "o gerente". Talvez porque calhordices desse tipo são mais gritantes quando são de mulheres... (aqui com certeza é meu viés cultural falando).
No parágrafo seguinte, vc expõe lindamente e angustiantemente esse vazio que todos temos. Os personagens caricatos não são diferentes da nossa própria ação diária, agradar, atender, entreter, para disfarçar o poço que muitas vezes cavamos, encobertar o fracasso de si mesmo. O que gostei muito é essa constatação linda de que a gente se perde na festa.
No sétimo paragrafo, quero descobrir que tipo de gente é a senhora Gruñon, ligada na "verdade" das revistas e das vidas irreais ao seu redor. Curioso esse pensamento.
Parece muito pertinente aliás, se a gente pensar que o mundo é um grande engodo, que tudo o que você descreve nos parágrafos seguintes pode ser cenas do próximo capítulo. Mas, também, a senhora parece um tipo de Princesa da Disney velha e psicopata, com sua baixa capacidade de empatia e seu mundo alternativo de contos de fada - no caso, as revistas. O que faz bastante sentido, já que o cotidiano a esmaga.
Nunca li esse livro ou vi conto parecido, mas se achar, te falo. De qualquer forma, acho que vc não precisa, dá conta sozinha.
To procurando uma expressão para descrever o que esse conto me trouxe, algo entre a bizarrice, o paradoxo e a delicadeza, mas ainda não achei.
Bjkas, Lady querida!!!!