PARA VOCÊ LER QUEM SABE UM DIA... >> Sergio Geia
Você se alegra quando percebe quem são as visitas. Até então, não entendia a subtração da paz, da televisão, do Raul Gil. Não entendia porque a levavam para fora, muito embora o sol daquele meio de tarde fosse agradável, aquecia o colo mesmo sem a manta esquecida na poltrona da sala de tevê.
Responde às nossas perguntas com escassez de palavras, há confusão no entendimento e nas respostas. De vez em quando volta a sua atenção para a unha, fica ali a examinar em minúcias como se houvesse algo inapropriado naquele pedaço de seu corpo que lhe causa tamanho estranhamento.
No silêncio que permitimos existir, você se desliga do mundo, e uma simples unha começando a debulhar é o seu mundo encantado talvez.
Falamos do tempo, da beleza do sol, do verde verdinho do jardim, algumas lembranças de familiares, e a sua dificuldade em falar e ouvir é tanta, que suponho o silêncio lhe fosse mais agradável, o seu mundo, talvez nele estivesse as lembranças de um tempo em que você era altiva, que suas pernas e malemolência percorriam os salões, ou mesmo a cozinha de seu apartamento ao som de bolero e samba-canção.
De repente você faz um gesto inesperado, faz menção de se levantar e aponta alguma coisa no chão; uma formiga. Digo com doçura é uma formiga, há varias delas aqui, você demonstra insatisfação, vontade de colocar um fim naquelas vidas, eu digo não, deixe as formiguinhas em paz, como se falasse a uma criança, mas você quer se levantar, como se conseguisse abandonar a cadeira de rodas, quer dar cabo daqueles bichos que enfeiam o seu chão.
Pedimos um sorriso para a foto a ser enviada à família e sua boca parece trancada, não se entrega mais à exibição dos dentes, ao sorrir fácil. O gesto comum para os outros não mais se afeiçoa à sua plástica. Talvez não se lembre mais, talvez não haja motivos, talvez um pequeno esquecimento e você não saiba mais o que é sorrir.
São bons momentos em sua companhia, ainda que você não converse e que prefira a vida em seu mundo. Mas você também não consegue disfarçar a alegria com a nossa chegada e a tristeza com a nossa partida. Nem o brilho no olhar, que há tempos não existe mais.
P.S.: No final da visita coloquei Luiz Ayrão pra você escutar. E você cantou.
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