CENÁRIO 3 | AQUELE QUARTO >> Carla Dias
Lembra-se de quando pediu para que as cortinas não fossem floridas. Não gostava de jardim estampado, preferia aqueles com os quais conseguia se misturar. E ele respeitou esse desejo, o último, o mais importante, o de antes de o outro desaparecer, continuando ali.
Sentado em uma cadeira, no canto do quarto, uma tentativa vã de se esconder da realidade, já que sua atenção jamais se desviaria do outro. Seu olhar captura a impotência de um observador que não está ali para matar curiosidade, colher sabedoria, aprofundar-se em um interesse. Está ali para atender a necessidade da realidade de se impor, exigindo espectadores atentos.
Por um instante, ambiciona se tornar um distraído. Depois, passa.
Porque há nessa dor de fazer companhia ao vazio do outro uma conexão que ele nunca sentiu com outra pessoa. E ela vem acompanhada de uma raiva sufocante, uma taquicardia de desamparos e arroubos. Uma incapacidade de se conformar que parece que nunca se dissipará, apesar de tantos jurarem que sim, ela terá fim.
Esparramado naquela poltrona, na qual gosta de se aconchegar, o outro desperta do cochilo de fim de tarde. Arregala olhos, como se visse fantasma se arrastando pela pele seca da pintura das paredes. Antes de se aproximar, ele respira demoradamente, como se ao reconhecer a sua capacidade de saber onde está e quem é, recebesse mais do que merecia. Porque o outro deveria estar ali, naquela cadeira, sendo capaz de fazer a sua parte e depois sair dali para ser quem era, viver suas aventuras nutridas pelo desejo de se esbaldar na vida.
Não ele...
Levanta-se em ritmo de monotonia intolerável, a carcaça lembrando os sete quilos e setecentos gramas que tem de perder, a fim de se lembrar de quem foi há três anos, de acordo com a fotografia colada com imã de farmácia, na geladeira da sua cozinha. Gostava daquela pessoa, de como se sentia confortável em suas roupas e vestindo seus sorrisos daquele quando; de como trafegava pela vida com a certeza de que receberia dela algo que o fizesse acreditar que valia a pena.
Mas não tem sido assim e este pensamento vem ainda mais forte enquanto ele alimenta o outro, colher tocando entre lábios dele, forçando entrada naquele silêncio para desaguar alimento que escorrerá pelo corpo sem a menor chance de provocar prazer, apenas para manter o corpo vivo, um abrigo para uma mente brilhante que já não sabe registrar história e se perdeu em uma repetição de memórias do início de si.
É desolador ser observador da vazies do outro. Depois de aprender tanto com ele, tornou-se sua a função de acompanhar definhamento, de quando as mãos repousam sobre o peito, por não saberem mais sobre a existência do movimento: buscar, alcançar, tocar, segurar. As pernas perderam o desejo pelas caminhadas, até as mais curtas, até a cozinha, para alcançar mais uma dose de café. Os cabelos rareados, como se dezenas de anos tivessem sido acoplados à existência dele, invadido a sua juventude.
Nem a tristeza que sente é compartilhável. Acreditou, até se dar conta que estava apenas mentindo a si mesmo, que enxergava no outro um resquício de reconhecimento. Não mais, não agora que tem dia em que ele é pai, é primo, é irmão falecido aos cinco anos de idade, o pintor surrealista que o outro teve o imenso prazer de conhecer, o vizinho com quem saiu no braço, mais de uma vez. Não agora em que ele é tantos para o outro, exceto ele mesmo, enquanto o outro é para ele quem sempre foi: um amigo que o ensinou tanto sobre a vida, mas não a lidar com a saudade, tampouco com a sua ausência presente.
Ajuda o outro a se deitar na cama, hora de fechar os olhos até dia seguinte. Ajeita-lhe os cabelos, abotoa seu pijama, porque é inverno e ele sempre gostou do calor, dos verões escandalosos, dizia que o frio lhe doía no corpo. E enquanto padece de lembranças maximizando saudade, conta a ele sobre aqueles que não sabem mais estar na presença dele, e esconde detalhes sobre o quanto sofrem por vê-lo assim, vazio, então preferem esquecê-lo pelo tempo possível. Conta como eles estão vivendo suas vidas, criando suas ondas, tocando em frente.
Detém-se no olhar vazio dele. Há pista nenhuma de sua existência nesse olhar. E se lembra de outro pedido, tão mais importante do que o das cortinas, que veio bem antes, quando ele ainda estava aqui:
- No meu funeral, toque a minha música pra lá de preferida.
Ele sorri, sustentando mais uma promessa a ser cumprida. Começa a cantar e o outro parece despertar, acompanhando-o até o final. Depois, o outro se apaga, desaparece.
Ele espera, a ausência do outro a lhe acompanhar, um pouco mais de tempo a cada dia.
Imagem © Remedios Varo por Astarmarket, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Comentários
Zoraya e Paulo, obrigada pela leitura.
Sim, é um conto de terror. Sim, uma descrição da impotência diante das decisões da vida em relação ao corpo dos seus servos.