DESCONTOS >> Carla Dias
Há dias ela segue vagueando pelo apartamento.
Tem planos desinibidos para desejos baratos e uma agenda de eventos aos quais se orgulha de ser capaz de escolher não comparecer.
Respira com profundeza adquirida, por meio da devida experiência, a cada vez que o âncora do jornal diz “há problemas nessa narrativa...” No sigilo dedicado às constatações de intimidar, confidencia a si – vestindo um sorriso desmaiado – que a narrativa que a própria vem alimentando é tão vazia quanto as que esperneiam nas notícias do telejornal. Problemáticas narrativas em roupas requintadas de esconder vergonhas que não sofrem de modéstia.
Então, deixa para lá.
Sabe que o mundo sofre. Os habitantes dele sofrem. Ela sofre enquanto navega pelos metros quadrados da sua biografia amuada, ajeitando cortinas, visitando produtos de limpeza, suspirando a falta de apartes. Ainda que lá fora acontecimentos desfilem sua diversidade de instigações: cheiros, sons, espaços, gentes. Ainda que o telefone toque e ela escute o telemarketinista por sete segundos e depois desligue.
Certo dia, acordou mais curiosa do que antes. Permitiu-se ficar mais tempo ao escutar voz de telemaketinista do outro lado da linha. Não acredita mais nos descontos oferecidos por eles ou pela vida.
Pretende cancelar o telefone fixo... quem ainda o usa? Mas como desapegar daqueles que enxergam nela uma chance de terminar o dia mais capacitados a vender serviços que nem sempre sabem direito para que servem?
Sente-se quase importante.
Enruga a testa quando o âncora diz “e amanhã...”
Mastigando a comida que alguém jurou que era dos deuses, mas nada muda. Não há milagre de sabores, danças alvoroçadas das delícias. É apenas um pedaço de algo sendo remexido dentro de sua boca, feito roupas na máquina de lavar.
Elabora uma lista de coisas a fazer que deve ser concluída até vinte e três e trinta. Sabe que irá esquecê-la sobre a mesa da cozinha, mas redigi-las se tornou tradição e não sabe como se desfazer dela. O que é certo é que se deitará antes da meia-noite, fones nos ouvidos e uma playlist de agradar devassos e pudicos.
Responde ao âncora quando ele diz “até amanhã”, mesmo sem confiar nele, no amanhã. Confia no âncora, sabe que ele se dedicará a dizer suas palavras a qualquer hora, em qualquer lugar. Responde que “talvez, quem sabe...” e se apega ao “sei não”.
Pensa na perda de tempo que é esperar pelo amanhã, só porque alguém disse que ele chegará ou porque tem sido assim desde ontem. Aprecia o ontem, cada um deles, em especial aqueles dos quais se lembra dos detalhes, sem distorcê-los para evitar sofrimentos provocados pelos sofrer dos padecimentos que neles cabem. Não é de desmembrar sentimento só porque ele não é produto que telemarketinistas conseguiriam vender sem chorar.
No entanto, não confia no amanhã.
Imagem © Vito Campanella
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