Alice >> Alfonsina Salomão
Tinha sido na casa de Tomoko, uma amiga sansei que conhecera nos tempos de faculdade. Tomoko havia acabado de voltar do país dos avós, que sonhava visitar desde menina. Entusiasmada com as descobertas que fez por lá, organizou um jantar para os amigos. Entre um gole de sakê e outro, a anfitriã projetou as fotos na parede e discursou sobre cada imagem, compartilhando suas anedotas de viagem com os convidados. Poderia ter sido entediante, não fosse pelo seu excelente senso de humor e pelo generoso barco de sushis disposto no centro da mesa. Em um dado momento, surgiu a figura de um vaso de cerâmica azul esverdeado, trespassado por tortuosas linhas douradas. “Ele foi consertado com ouro”, explicou Tomoko. “É uma técnica que os japoneses aplicam à cerâmica quebrada, chamada kintsukuroi”. O resultado estético era belíssimo. Alice não sabia que um vaso quebrado poderia ser tão bonito.
Logo Tomoko estava discursando sobre outra foto, um grupo de adolescentes vestidas como estudantes sensuais no centro de Tóquio. Quando a exibição chegou ao fim, continuaram bebendo sakê e devaneando. Alice até fumou um baseado, coisa que não fazia há anos, e deu seu telefone para um conhecido de Tomoko que apareceu por lá, um intelectual cheio de si e um pouco sujo, com a barba por fazer e a camisa sem passar. Voltou pra casa alegre, ligeiramente entorpecida. Foi só no dia seguinte que a obsessão começou. Kintsukuroi.
Não dava mais pra ignorar. Quase a contragosto, abriu o computador e teclou a palavra no Google. Apareceu a definição: “a arte de reparar cerâmicas quebradas com ouro ou prata e o entendimento de que a peça é mais bonita por ter sido quebrada. lit. ‘consertar com ouro’.” Até aquela noite na casa de Tomoko, Alice nunca tinha ouvido falar em nada parecido. Pelo contrário, gostava da expressão “vaso quebrado não tem conserto”, que aplicava a vários de seus relacionamentos. Era uma amiga e companheira leal e dedicada, até a hora em que se decepcionava. Aí, não tinha mais jeito. Sentindo que era impossível remendar os cacos, se afastava e se esforçava para não pensar mais na relação quebrada.
A técnica japonesa lhe abria novas perspectivas. Kintsukuroi. Não apenas era possível emendar o vaso, como ele ficava mais bonito depois! Continuou buscando informações, admirando as imagens das cerâmicas transpassadas por luminosos fios de ouro. Analisava cada imagem longamente, hipnotizada pelo resultado.
Em meio à suas pesquisas, deparou-se com um site onde os vasos remendados eram comparados com partes quebradas da psique. Ao invés de ignorá-las, estava escrito, era possível acolhê-las e transformar as cicatrizes em ouro. Era esta a alquimia interior. Ainda sem entender direito a relação entre kintsukuroi, o que estava lendo e sua própria experiência, Alice fechou os olhos. Havia algo ali que merecia sua atenção, pensaria nisso outro dia. Escorregou num sono profundo e acordou renovada, como há muito não se sentia.
Comentários
Ah, escreva muito porque, com certeza, vamos falar de suas mulheres e crônicas-espelho na sua live...
Sua metáfora nos leva numa viagem edificante.
- Zoraya, quando vocês me chamaram pra escrever aqui, este texto logo me veio em mente!
- Nadia, estou ansiosa pra nossa live! Esse texto nasceu de um exercício do TP. Antes eu nunca tinha ouvido a palavra Kintsukuroi. Também espero consertar minhas feridas com emendas de ouro :)
- Albir e Paulo: muito obrigada. Se consigo fazer os leitores viajar, mesmo um pouquinho, e ainda por cima confiar no universo, ganhei meu dia!!!